A Toler�ncia
A reprodu��o deste 13� cap�tulo do
livro Pequeno Tratado das Grandes
Virtudes
, de Andr�-Comte Sponville
foi gentilmente autorizada pela
Ed. Martins Fontes.
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Longe de se dever, para ser tolerante, renunciar a amar a verdade, �, ao contr�rio, esse
pr�prio amor � mas sem quimeras � que nos fornece nossas principais raz�es de o ser. A
primeira delas � que amar a verdade, sobretudo nesses dom�nios, tamb�m � reconhecer que
nunca a conhecemos absolutamente, nem com toda certeza. O problema da toler�ncia,
como vimos, s� se coloca nas quest�es de opini�o. Ora, o que � uma opini�o, sen�o uma
cren�a incerta ou, em todo caso, sem outra certeza que n�o subjetiva? O cat�lico pode
muito bem, subjetivamente, estar certo da verdade do catolicismo. Mas, se ele �
intelectualmente honesto [se ama a verdade mais que a certeza], deve reconhecer que �
incapaz de convencer um protestante, um ateu ou um mu�ulmano, ainda que cultos,
inteligentes e de boa-f�. Cada um, por mais convencido que possa estar de ter raz�o, deve
pois admitir que n�o tem condi��es para prov�-lo... A toler�ncia, como for�a pr�tica [como
virtude], funda-se assim em nossa fraqueza te�rica, isto �, na incapacidade em que
estamos de alcan�ar o absoluto. Foi o que viram Montaigne, Bayle, Voitaire: "� dar um
pre�o muito alto a suas conjecturas", dizia o primeiro, "assar um homem vivo por causa
delas"; "a evid�ncia � uma qualidade relativa", dizia o segundo; e o terceiro, como que
insistindo: "O que � a toler�ncia? � o apan�gio da humanidade. Somos todos feitos de
fraquezas e de erros; perdoemo-nos reciprocamente nossas tolices, � esta a primeira lei da
natureza."
13 � a� que a toler�ncia tem a ver com a humildade, ou antes, dela decorre, como
esta da boa-f�: amar a verdade at� o fim � tamb�m aceitar a d�vida em que ela resulta,
para o homem. De novo Voltaire: "Devemos tolerar-nos mutuamente, porque somos todos
fracos, inconseq�entes, sujeitos � mutabilidade, ao erro. Um cani�o vergado pelo vento
sobre a lama porventura dir� ao cani�o vizinho, vergado em sentido contr�rio: 'Rasteja a
meu modo, miser�vel, ou farei um requerimento para que te arranquem e te queimem'?"
14
Humildade e miseric�rdia andam juntas, e esse conjunto, no que se refere ao pensamento,
conduz � toler�ncia.
A segunda raz�o prende-se mais � pol�tica do que � moral, e mais aos limites do Estado do
que do conhecimento. Ainda que tivesse acesso ao absoluto, o soberano n�o teria
condi��es de imp�-lo a ningu�m, porque n�o se poderia for�ar um indiv�duo a pensar de
maneira diferente da que pensa, nem a crer verdadeiro o que lhe parece falso. Foi o que
viram Spinoza e Locke
15, e que, no s�culo XX, a hist�ria dos diferentes totalitarismos
confirma. Pode-se impedir um indiv�duo de exprimir o que cr�, mas n�o de pens�-lo. Ou
ent�o tem-se de suprimir o pr�prio pensamento, e enfraquecer assim o Estado... N�o h�
intelig�ncia sem liberdade de julgamento, nem sociedade pr�spera sem intelig�ncia.
Portanto, um Estado totalit�rio tem de se resignar � tolice ou � dissid�ncia, � pobreza ou �
cr�tica... A hist�ria recente dos pa�ses do leste europeu mostra que esses escolhos, entre
os quais o totalitarismo pode sem d�vida navegar por muito tempo, no entanto, o condenam
a um naufr�gio t�o imprevis�vel, em suas formas, quanto dif�cil, a mais ou menos longo
prazo, a se evitar... A intoler�ncia torna tolo, assim como a tolice torna intolerante. � uma
sorte para nossas democracias, e talvez explique uma parte de sua for�a, que surpreendeu
muitos, ou afinal a fraqueza dos Estados totalit�rios. Nem uma nem outra teriam deixado
surpreso Spinoza, que fazia do totalitarismo esta descri��o antecipada: "Suponhamos",
escreve, "que essa liberdade [de julgamento] possa ser comprimida e que seja poss�vel
manter os homens em tal depend�ncia que n�o ousem proferir uma palavra, a n�o ser por
prescri��o do soberano; ainda assim, este n�o conseguir� nunca que s� tenham os
pensamentos que ele quiser; e desse modo, por uma conseq��ncia necess�ria, os homens
n�o deixariam de ter opini�es em desacordo com sua linguagem, e a boa-f�, esta primeira
necessidade do Estado, se corromperia; o incentivo dado � detest�vel adula��o e � perf�dia
traria o reinado da esperteza e da corrup��o de todas as rela��es sociais..."
16 Em suma,
com o tempo, a intoler�ncia do Estado [portanto, tamb�m o que chamamos de
totalitarismo] n�o pode deixar de debilit�-lo, pela debilita��o do v�nculo social e da
consci�ncia de cada um. Num regime tolerante, ao contr�rio, a for�a do Estado constitui a
liberdade de seus membros, assim como sua liberdade constitui sua for�a: "O que exige,
antes de mais nada a seguran�a do Estado", conclui Spinoza, � evidentemente que cada um
submeta sua a��o �s leis do soberano [do povo, portanto, numa democracia], mas tamb�m
"que, quanto ao mais, seja permitido a cada um pensar o que quer e dizer o que pensa"
17.
O que � isso sen�o a laicidade? E o que � a laicidade, sen�o a toler�ncia institu�da?
A terceira raz�o � a que evoquei a princ�pio; mas ela talvez seja, em nosso universo
espiritual, a mais recente e a menos comumente aceita: trata-se do div�rcio [ou, digamos,
da independ�ncia rec�proca] entre a verdade e o valor, entre o verdadeiro e o bem. Se � a
verdade que comanda, como acreditam Plat�o, St�lin ou Jo�o Paulo II, a �nica virtude �
submeter-se a ela. E, uma vez que a verdade � a mesma para todos, todos devem
submeter-se igualmente aos mesmos valores, �s mesmas regras, aos mesmos imperativos:
uma mesma verdade para todos, logo uma mesma moral, uma mesma pol�tica, uma mesma
religi�o para todos! Fora da verdade n�o h� salva��o, e fora da Igreja ou do Partido, n�o h�
verdade... O dogmatismo pr�tico, que pensa o valor como uma verdade, conduz assim �
consci�ncia tranq�ila, � auto-sufici�ncia, � rejei��o ou ao desprezo do outro � �
intoler�ncia. Todos os que n�o se submetem � "verdade sobre o bem e sobre o mal moral",
escreve por exemplo Jo�o Paulo II, "verdade estabelecida pela 'Lei divina', norma universal
e objetiva da moralidade
"
18, todos estes, pois, vivem no pecado, e embora, � claro, devam
ser lastimados e amados, n�o se poderia reconhecer seu direito de julgar de modo
diferente: seria cair no subjetivismo, no relativismo ou no ceticismo
19, e esquecer com isso
"que n�o h� liberdade nem fora da verdade, nem contra ela"
20. Como a verdade, assim
tamb�m a moral n�o depende de n�s: "a verdade moral", como diz Jo�o Paulo II
21, imp�e-se
a todos e n�o poderia depender nem das culturas, nem da hist�ria, nem de uma autonomia
qualquer do homem ou da raz�o
22. Que verdade? Claro que a "verdade revelada", tal como
a Igreja, e s� ela, a transmite
23! Fa�am o que fizerem todos os casais cat�licos que utilizam
p�lulas ou preservativos, todos os homossexuais, todos os te�logos modernos, isso em nada
alterar� o problema: "O fato de que certos crentes ajam sem seguir os ensinamentos do
Magist�rio ou considerem, erroneamente, ser justa do ponto de vista moral uma conduta
que seus pastores declaram contr�ria � Lei de Deus, n�o pode ser um argumento v�lido
para refutar a verdade das normas morais ensinadas pela Igreja."
24 E tampouco o seria a
consci�ncia individual ou coletiva: "� a voz de Jesus Cristo, a voz da verdade sobre o bem
e o mal que ouvimos na resposta da Igreja.
"
25 A verdade se imp�e a todos, portanto
tamb�m � religi�o [pois ela � a verdadeira religi�o], portanto tamb�m � moral [ pois a moral
"� fundada na verdade"]
26. � uma filosofia de boneca russa: � preciso obedecer � verdade,
logo a Deus, logo � Igreja, logo ao Papa... O ate�smo ou a apostasia, por exemplo, s�o
pecados mortais, isto �, pecados que, salvo arrependimento, acarretam "a condena��o
eterna"
27. Eis, pois, seu servidor, sem falar de seus outros erros, que s�o in�meros, j�
danado duas vezes... � o que Jo�o Paulo II chama de "a certeza reconfortante da lei
crist�"
28. Veritatis terror!

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