A Toler�ncia
A reprodu��o deste 13� cap�tulo do
livro Pequeno Tratado das Grandes
Virtudes
, de Andr�-Comte Sponville
foi gentilmente autorizada pela
Ed. Martins Fontes.
[p�gina 4/4]
N�o quero deter-me nessa enc�clica, que n�o tem maior import�ncia. Como as
circunst�ncias hist�ricas tiram toda e qualquer plausibilidade [pelo menos no Ocidente e
a curto ou m�dio prazo] de n�o sei que volta � inquisi��o ou � ordem moral, as posi��es
da Igreja, ainda que intolerantes, devem � claro ser toleradas. Vimos que apenas a
periculosidade de uma atitude [e n�o a toler�ncia ou a intoler�ncia de que ela d� prova]
devia determinar que tal atitude seja ou n�o tolerada: feliz �poca a nossa, e feliz pa�s
em que mesmo as Igrejas deixaram de ser perigosas! J� se foi o tempo em que podiam
queimar Giordano Bruno, supliciar Calas ou guilhotinar [aos dezenove anos!] o cavaleiro
de La Barre... De resto, s� tomei essa enc�clica como exemplo para mostrar que o
dogmatismo pr�tico sempre leva, ainda que de forma atenuada, � intoler�ncia. Se os
valores s�o verdadeiros, se s�o conhecidos, n�o se poderia nem discuti-los nem
escolh�-los, e os que n�o compartilham os nossos est�o, por conseguinte, errados � por
isso n�o merecem outra toler�ncia al�m daquela que podemos ter, �s vezes, para com
os ignorantes ou os imbecis. Mas isso ser� ainda toler�ncia?
Para quem reconhece que valor e verdade s�o duas ordens diferentes [esta ligada ao
conhecimento, aquela ao desejo], h� nesta disjun��o, ao contr�rio, uma raz�o
suplementar para ser tolerante: ainda que tiv�ssemos acesso a uma verdade absoluta,
com efeito, isso n�o poderia obrigar todo o mundo a respeitar os mesmos valores, nem
portanto a viver da mesma maneira. O conhecimento, que se refere ao ser, nada diz
sobre o dever-ser: o conhecimento n�o julga, o conhecimento n�o comanda! A verdade
se imp�e a todos, decerto, mas n�o imp�e nada. Ainda que Deus existisse, por que
dever�amos aprov�-lo sempre? E que direito teria eu, quer ele exista quer n�o, de impor
meu desejo, minha vontade ou meus valores aos que n�o os compartilham? S�o
necess�rias leis comuns? Sem d�vida, mas apenas nos dom�nios que nos s�o comuns!
Que me importam as esquisitices er�ticas de fulano ou de beltrano, se s�o praticadas
entre adultos que concordam com elas? Quanto �s leis comuns, embora sejam
obviamente necess�rias [para impedir o pior, para proteger os fracos...], cabe � pol�tica
e � cultura cuidar delas � e estas sempre s�o relativas, conflituais, evolutivas -, e n�o a
uma verdade absoluta qualquer que se impusesse a n�s e que, portanto, poder�amos
legitimamente impor a outrem. A verdade � a mesma para todos, mas o desejo n�o, mas
a vontade n�o. N�o significa que nossos desejos e nossas vontades nunca possam nos
aproximar, o que seria surpreendente, j� que temos o mesmo corpo, no essencial, a
mesma raz�o [a raz�o, se n�o � o todo da moral, nela representa, sem d�vida, um papel
importante] e, cada vez mais, a mesma cultura... Esse encontro dos desejos, essa
comunh�o das vontades, essa aproxima��o das civiliza��es, quando ocorrem, n�o s�o o
resultado de um conhecimento: s�o um fato da hist�ria, um fato do desejo, um fato de
civiliza��o. Que o cristianismo desempenhou nisso um papel de destaque, todos sabem;
ele n�o desculpa a Inquisi��o, claro, mas a Inquisi��o tamb�m n�o poderia apag�-lo:
"Ama e faz o que queres..." Podemos conservar essa moral do amor sem o dogmatismo
da Revela��o? Por que n�o? Temos necessidade de conhecer absolutamente a verdade
para am�-la? Precisamos de um Deus para amar nosso pr�ximo? Veritatis amor,
humanitatis amor...
Contra o esplendor da verdade [por que ela teria de ser
espl�ndida?], contra o peso dos dogmas e das Igrejas, a do�ura da toler�ncia...

Podemos nos indagar, para concluir, se esta palavra � toler�ncia � � de fato a que nos
conv�m: h� nela algo de condescendente, se n�o de desdenhoso, que incomoda.
Lembrem-se da boutade de Claudel: "Toler�ncia? H� casas para isso?" Isso diz muito
sobre Claudel e sobre a toler�ncia. Tolerar as opini�es do outro acaso j� n�o �
consider�-las inferiores ou incorretas? A rigor, s� podemos tolerar aquilo que ter�amos o
direito de impedir: se as opini�es s�o livres, como devem ser, n�o dependem pois da
toler�ncia! Da� um novo paradoxo da toler�ncia, que parece invalidar sua no��o. Se as
liberdades de cren�a, de opini�o, de express�o e de culto s�o de direito, n�o podem ser
toleradas, mas simplesmente respeitadas, protegidas, celebradas. Apenas "a insol�ncia
de um culto dominador", j� observava Condorcet, p�de "denominar toler�ncia, isto �,
uma permiss�o dada por homens a outros homens"
29, o que deveria ser considerado ao
contr�rio como o respeito por uma liberdade comum. Cem anos mais tarde, o Vocabul�rio
de Lalande ainda atesta, no in�cio deste s�culo, numeros�ssimas retic�ncias. O respeito �
liberdade religiosa "� muito mal chamado de toler�ncia", escrevia por exemplo Renouvier,
"pois � estrita justi�a e obriga��o inteira". Retic�ncia tamb�m em Louis Prat: "N�o se
deveria dizer toler�ncia, mas respeito: sen�o a dignidade moral � atingida... A palavra
toler�ncia implica, com muita freq��ncia, em nossa l�ngua, a id�ia de polidez, �s vezes
de piedade, �s vezes de indiferen�a; talvez por causa dela a id�ia do respeito devido �
liberdade leal de pensar seja falseada na maioria dos esp�ritos." Retic�ncia tamb�m em
�mile Boutroux: "N�o gosto dessa palavra, toler�ncia; falemos de respeito, de simpatia,
de amor..."
30 Todas essas observa��es s�o justificadas, mas nada puderam contra o
uso. Noto de resto que o adjetivo respectueux [respeitoso], em franc�s, n�o evoca em
absoluto o respeito � liberdade alheia, nem mesmo sua dignidade, mas antes uma
esp�cie de defer�ncia ou de considera��o que podemos julgar suspeita, muitas vezes, e
que n�o encontraria seu lugar num tratado das virtudes... Tolerante, ao contr�rio,
imp�s-se, na linguagem corrente como na filos�fica, para designar a virtude que se op�e
ao fanatismo, ao sectarismo, ao autoritarismo, em suma... � intoler�ncia. Esse uso n�o
me parece desprovido de raz�o: ele reflete, na pr�pria virtude que a supera, a
intoler�ncia de cada um. A rigor, dizia eu, s� se pode tolerar o que se teria o direito de
impedir, de condenar, de proibir. Mas esse direito que n�s n�o temos, quase sempre
temos a sensa��o de t�-lo. N�o temos raz�o de pensar o que pensamos? E, se temos
raz�o, como os outros n�o estariam errados? E como a verdade poderia aceitar � a n�o
ser por toler�ncia � a exist�ncia ou a continuidade do erro? O dogmatismo sempre
renasce, ele nada mais � que um amor ilus�rio e ego�sta da verdade. Por isso chamamos
de toler�ncia o que, se f�ssemos mais l�cidos, mais generosos, mais justos, deveria
chamar-se respeito, de fato, ou simpatia ou amor... Portanto, � a palavra que conv�m,
pois o amor falta, pois a simpatia falta, pois o respeito falta. A palavra toler�ncia s� nos
incomoda porque � por uma vez! � n�o antecipa, ou n�o antecipa muito, o que somos...
"Virtude menor", dizia Jank�l�vitch
31. Porque ela se assemelha a n�s. "Tolerar n�o �,
evidentemente, um ideal", j� notava Abauzit, "n�o � um m�ximo, � um m�nimo."
32 Claro,
mas � melhor que nada ou que seu contr�rio! � evidente que mais valem o respeito ou o
amor. Se a palavra toler�ncia se imp�s, entretanto, � sem d�vida porque de amor ou de
respeito todos se sentem muito pouco capazes, em se tratando de seus advers�rios �
ora, � em rela��o a eles, primeiramente que a toler�ncia age... "Esperando o belo dia em
que a toler�ncia se incline ao amor", conclui Jank�l�vitch, "diremos que a toler�ncia, a
prosaica toler�ncia � aquilo que melhor podemos fazer! A toler�ncia � por menos
exaltante que seja esta palavra � �, pois, uma solu��o pass�vel; � espera de melhor,
isto �, � espera de que os homens possam se amar ou simplesmente se conhecer e se
compreender, demo-nos por felizes com que eles comecem a se suportar. A toler�ncia �,
pois, um momento provis�rio."
33 Que esse provis�rio � feito para durar, que claro. Se ele
cessasse, seria de se temer que a barb�rie, em vez do amor, lhe sucedesse! Pequena
virtude, tamb�m ela, a toler�ncia talvez desempenhe, na vida coletiva, o mesmo papel
da polidez na vida interpessoal
34: � apenas um come�o, mas o �.
Sem contar que �s vezes � necess�rio tolerar o que n�o se quer nem respeitar nem
amar. O irrespeito nem sempre � uma falta, longe disso, e certos �dios est�o bem
pr�ximos de ser virtudes. H�, o intoler�vel como vimos, que cumpre combater. Mas h�
tamb�m o toler�vel, que � contudo desprez�vel e detest�vel. A toler�ncia diz tudo isso,
ou pelo menos o autoriza. Essa pequena virtude nos conv�m: ela est� a nosso alcance,
o que n�o � t�o freq�ente, e alguns de nossos advers�rios, parece-nos, n�o merecem
muito mais...
Como a simplicidade � a virtude dos s�bios e a sabedoria, dos santos, assim a toler�ncia
� sabedoria e virtude para aqueles que � todos n�s � n�o s�o nem uma coisa nem outra.
Pequena virtude, mas necess�ria. Pequena sabedoria, mas acess�vel.


Notas
1.O que n�o quer dizer que seja verdadeira, mas simplesmente que deve ser poss�vel, se ela �
falsa, mostr�-lo [ver K. Popper, La logique de la d�couverte scientifique, trad. franc., Payot, 1973]; nem
que seja �nica ou totalmente cient�fica [ver K. Popper, La qu�te inachev�e, trad. franc., Presses Pocket,
reed. 1989, cap. 37], mas simplesmente que uma parte nela escapa da opini�o � logo tamb�m da
toler�ncia.
2.Maximes et r�flexions, 19.
3.V. Jank�l�vitch, Trait� des vertus, II, 2, ed. Champs-Flammarion, 1986, p.92.
4.La societ� ouverte et ses ennemis, trad. franc., Seuil, 1979, t. 1, n� 4 do cap. 7, p. 222.
5.J. Rawls, Th�orie de la justice, II, 4, se��o 35, p. 256 da trad. franc., Seuil, 1987.
6.Op. cit., p. 93.
7.Op. cit., p. 222. Ver tamb�m o texto j� citado de Rawls, especialmente nas pp. 254-256.
8.Ver Jank�l�vitch, op. cit., p. 93.
9.Montesquieu, L'espirit des lois, III, 1-9; Hannah Arendt, Les origines du totalitarisme, t. 3: Le
syst�me totalitaire
, cap. 4: ["Id�ologie et terreur: un nouveau type de r�gime"], pp. 203 ss. da trad.
franc., Seuil, col. "Points Politique", 1972. Sobre o caso particular do stalinismo, ver tamb�m L� mythe
d'Icare
, cap. 2.
10.D�finitions, Pl�iade, L�s arts et l�s dieux, p. 1095 [defini��o da toler�ncia].
11.Op. cit., p. 224.
12.Sobre tudo isso, que aqui posso apenas esbo�ar, ver Valeur et v�rit� [�tudes cyniques], PUF,
1994.
13.Montaigne, Essais, III, 11, p. 1032 da ed. Villey-Saulnier; Bayle, De la tol�rance
[Commentaire philosophique sur ces paroles de J�sus-Christ "Contrains-les d'entrer"]
, da ed. Gros,
Presses Pocket, 1992, p. 189; Voltaire, Dictionnaire philosophique, verbete "Tol�rance", pp. 362-363 da
ed. Pomeau, G.-F., 1964 [ver tamb�m, do mesmo autor, Trait� sur la tol�rance, especialmente os caps.
21, 22 e 25, pp. 132 ss. da ed. Pomeau, G.-F., 1989]. Essa id�ia permanece, � claro, perfeitamente
atual: ver K. Popper, Conjectures et refutations, pp. 36-37 da trad. franc., Payot, 1985.
14.Dictionaire philosophique, p. 386. Sobre a id�ia de toler�ncia no s�culo XVIII, ver E. Cassirer,
La philosophie d�s Lumi�res, IV, 2, pp. 223-247 da trad. franc. [Fayard, reed. "Agora", 1986].
15.Spinoza, Trait� th�ologico-politique [sobretudo o cap. 20]; Locke, Lettre sur la tol�rance
[recentemente reeditada com uma longa e rica tradu��o de J.-F. Spitz, G.-F., 1992].
16.Trait� th�ologico-politique, cap. 20, p. 332 da ed. Appuhn, reed. G.-F., 1965.
17.Id., ed. Appuhn, p. 336.
18.Veritatis splendor [la splendeur de v�rit�], enc�clica de Jo�o Paulo II, trad. franc., Mame/Plon,
1993, p. 95 [grifado por Jo�o Paulo II].
19.Ver p. ex., id., pp. 4, 133, 156, 163, 172.
20.Id., p. 150.
21.P. ex., pp. 146-149. Ver tamb�m pp. 157, 170 e 180.
22.Ibid., sobretudo nos �� 35-37 [contra a autonomia] e 53 [contra o relativismo cultural e
hist�rico].
23.Id., p. ex. �� 29, 37 e 109-117.
24.Id., p. 172.
25.Id., p. 180 [grifo de Jo�o Paulo II].
26.Id., p. 157. Ver tamb�m pp. 152-153.
27.Id., pp. 109 a 112.
28.Id., p. 182.
29.Esquisse d'un tableau historique des progr�s de l'esprit humain, VIII, p. 129 da ed. Prior, Vrin,
1970.
30.Todas essas cita��es s�o extra�das do sempre precioso Vocabulaire technique et critique de la
philosophie
de Lalande, Bulletin de la Soci�t� fran�aise de philosophie, 1902-1923, reed. PUF, 1968, pp.
1133-1136 [verbete "Tol�rance"]. H� retic�ncias do mesmo tipo no cap�tulo j� citado de Jank�l�vitch
[pp. 86 ss.].
31.Op. cit., pp. 86 e 94.
32.F. Abauzit, na discuss�o da Sociedade Francesa de Filosofia, Vocabulaire de Lalande, p. 1134.
Mesma id�ia em Jank�l�vitch, op. cit., p. 87.
33.Op. cit., pp. 101-102.
34.Cf. supra, cap. 1, pp. 15 ss. A express�o "pequena virtude", que utilizei a prop�sito da
polidez, � empregada por Jank�l�vitch a prop�sito da toler�ncia [op. cit., p. 86].

p�gina anterior [3/4]
voltar