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Não quero deter-me nessa encíclica, que não tem maior importância. Como as
circunstâncias históricas tiram toda e qualquer plausibilidade [pelo menos no Ocidente e
a curto ou médio prazo] de não sei que volta à inquisição ou à ordem moral, as posições
da Igreja, ainda que intolerantes, devem é claro ser toleradas. Vimos que apenas a
periculosidade de uma atitude [e não a tolerância ou a intolerância de que ela dá prova]
devia determinar que tal atitude seja ou não tolerada: feliz época a nossa, e feliz país
em que mesmo as Igrejas deixaram de ser perigosas! Já se foi o tempo em que podiam
queimar Giordano Bruno, supliciar Calas ou guilhotinar [aos dezenove anos!] o cavaleiro
de La Barre... De resto, só tomei essa encíclica como exemplo para mostrar que o
dogmatismo prático sempre leva, ainda que de forma atenuada, à intolerância. Se os
valores são verdadeiros, se são conhecidos, não se poderia nem discuti-los nem
escolhê-los, e os que não compartilham os nossos estão, por conseguinte, errados – por
isso não merecem outra tolerância além daquela que podemos ter, às vezes, para com
os ignorantes ou os imbecis. Mas isso será ainda tolerância?
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Para quem reconhece que valor e verdade são duas ordens diferentes [esta ligada ao
conhecimento, aquela ao desejo], há nesta disjunção, ao contrário, uma razão
suplementar para ser tolerante: ainda que tivéssemos acesso a uma verdade absoluta,
com efeito, isso não poderia obrigar todo o mundo a respeitar os mesmos valores, nem
portanto a viver da mesma maneira. O conhecimento, que se refere ao ser, nada diz
sobre o dever-ser: o conhecimento não julga, o conhecimento não comanda! A verdade
se impõe a todos, decerto, mas não impõe nada. Ainda que Deus existisse, por que
deveríamos aprová-lo sempre? E que direito teria eu, quer ele exista quer não, de impor
meu desejo, minha vontade ou meus valores aos que não os compartilham? São
necessárias leis comuns? Sem dúvida, mas apenas nos domínios que nos são comuns!
Que me importam as esquisitices eróticas de fulano ou de beltrano, se são praticadas
entre adultos que concordam com elas? Quanto às leis comuns, embora sejam
obviamente necessárias [para impedir o pior, para proteger os fracos...], cabe à política
e à cultura cuidar delas – e estas sempre são relativas, conflituais, evolutivas -, e não a
uma verdade absoluta qualquer que se impusesse a nós e que, portanto, poderíamos
legitimamente impor a outrem. A verdade é a mesma para todos, mas o desejo não, mas
a vontade não. Não significa que nossos desejos e nossas vontades nunca possam nos
aproximar, o que seria surpreendente, já que temos o mesmo corpo, no essencial, a
mesma razão [a razão, se não é o todo da moral, nela representa, sem dúvida, um papel
importante] e, cada vez mais, a mesma cultura... Esse encontro dos desejos, essa
comunhão das vontades, essa aproximação das civilizações, quando ocorrem, não são o
resultado de um conhecimento: são um fato da história, um fato do desejo, um fato de
civilização. Que o cristianismo desempenhou nisso um papel de destaque, todos sabem;
ele não desculpa a Inquisição, claro, mas a Inquisição também não poderia apagá-lo:
"Ama e faz o que queres..." Podemos conservar essa moral do amor sem o dogmatismo
da Revelação? Por que não? Temos necessidade de conhecer absolutamente a verdade
para amá-la? Precisamos de um Deus para amar nosso próximo? Veritatis amor,
humanitatis amor... Contra o esplendor da verdade [por que ela teria de ser
esplêndida?], contra o peso dos dogmas e das Igrejas, a doçura da tolerância...
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Podemos nos indagar, para concluir, se esta palavra – tolerância – é de fato a que nos
convém: há nela algo de condescendente, se não de desdenhoso, que incomoda.
Lembrem-se da boutade de Claudel: "Tolerância? Há casas para isso?" Isso diz muito
sobre Claudel e sobre a tolerância. Tolerar as opiniões do outro acaso já não é
considerá-las inferiores ou incorretas? A rigor, só podemos tolerar aquilo que teríamos o
direito de impedir: se as opiniões são livres, como devem ser, não dependem pois da
tolerância! Daí um novo paradoxo da tolerância, que parece invalidar sua noção. Se as
liberdades de crença, de opinião, de expressão e de culto são de direito, não podem ser
toleradas, mas simplesmente respeitadas, protegidas, celebradas. Apenas "a insolência
de um culto dominador", já observava Condorcet, pôde "denominar tolerância, isto é,
uma permissão dada por homens a outros homens"29, o que deveria ser considerado ao
contrário como o respeito por uma liberdade comum. Cem anos mais tarde, o Vocabulário
de Lalande ainda atesta, no início deste século, numerosíssimas reticências. O respeito à
liberdade religiosa "é muito mal chamado de tolerância", escrevia por exemplo Renouvier,
"pois é estrita justiça e obrigação inteira". Reticência também em Louis Prat: "Não se
deveria dizer tolerância, mas respeito: senão a dignidade moral é atingida... A palavra
tolerância implica, com muita freqüência, em nossa língua, a idéia de polidez, às vezes
de piedade, às vezes de indiferença; talvez por causa dela a idéia do respeito devido à
liberdade leal de pensar seja falseada na maioria dos espíritos." Reticência também em
Émile Boutroux: "Não gosto dessa palavra, tolerância; falemos de respeito, de simpatia,
de amor..."30 Todas essas observações são justificadas, mas nada puderam contra o
uso. Noto de resto que o adjetivo respectueux [respeitoso], em francês, não evoca em
absoluto o respeito à liberdade alheia, nem mesmo sua dignidade, mas antes uma
espécie de deferência ou de consideração que podemos julgar suspeita, muitas vezes, e
que não encontraria seu lugar num tratado das virtudes... Tolerante, ao contrário,
impôs-se, na linguagem corrente como na filosófica, para designar a virtude que se opõe
ao fanatismo, ao sectarismo, ao autoritarismo, em suma... à intolerância. Esse uso não
me parece desprovido de razão: ele reflete, na própria virtude que a supera, a
intolerância de cada um. A rigor, dizia eu, só se pode tolerar o que se teria o direito de
impedir, de condenar, de proibir. Mas esse direito que nós não temos, quase sempre
temos a sensação de tê-lo. Não temos razão de pensar o que pensamos? E, se temos
razão, como os outros não estariam errados? E como a verdade poderia aceitar – a não
ser por tolerância – a existência ou a continuidade do erro? O dogmatismo sempre
renasce, ele nada mais é que um amor ilusório e egoísta da verdade. Por isso chamamos
de tolerância o que, se fôssemos mais lúcidos, mais generosos, mais justos, deveria
chamar-se respeito, de fato, ou simpatia ou amor... Portanto, é a palavra que convém,
pois o amor falta, pois a simpatia falta, pois o respeito falta. A palavra tolerância só nos
incomoda porque – por uma vez! – não antecipa, ou não antecipa muito, o que somos...
"Virtude menor", dizia Jankélévitch31. Porque ela se assemelha a nós. "Tolerar não é,
evidentemente, um ideal", já notava Abauzit, "não é um máximo, é um mínimo."32 Claro,
mas é melhor que nada ou que seu contrário! É evidente que mais valem o respeito ou o
amor. Se a palavra tolerância se impôs, entretanto, é sem dúvida porque de amor ou de
respeito todos se sentem muito pouco capazes, em se tratando de seus adversários –
ora, é em relação a eles, primeiramente que a tolerância age... "Esperando o belo dia em
que a tolerância se incline ao amor", conclui Jankélévitch, "diremos que a tolerância, a
prosaica tolerância é aquilo que melhor podemos fazer! A tolerância – por menos
exaltante que seja esta palavra – é, pois, uma solução passável; à espera de melhor,
isto é, à espera de que os homens possam se amar ou simplesmente se conhecer e se
compreender, demo-nos por felizes com que eles comecem a se suportar. A tolerância é,
pois, um momento provisório."33 Que esse provisório é feito para durar, que claro. Se ele
cessasse, seria de se temer que a barbárie, em vez do amor, lhe sucedesse! Pequena
virtude, também ela, a tolerância talvez desempenhe, na vida coletiva, o mesmo papel
da polidez na vida interpessoal34: é apenas um começo, mas o é.
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Sem contar que às vezes é necessário tolerar o que não se quer nem respeitar nem
amar. O irrespeito nem sempre é uma falta, longe disso, e certos ódios estão bem
próximos de ser virtudes. Há, o intolerável como vimos, que cumpre combater. Mas há
também o tolerável, que é contudo desprezível e detestável. A tolerância diz tudo isso,
ou pelo menos o autoriza. Essa pequena virtude nos convém: ela está a nosso alcance,
o que não é tão freqüente, e alguns de nossos adversários, parece-nos, não merecem
muito mais...
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Como a simplicidade é a virtude dos sábios e a sabedoria, dos santos, assim a tolerância
é sabedoria e virtude para aqueles que – todos nós – não são nem uma coisa nem outra.
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Pequena virtude, mas necessária. Pequena sabedoria, mas acessível.
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Notas
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1. O que não quer dizer que seja verdadeira, mas simplesmente que deve ser possível, se ela é
falsa, mostrá-lo [ver K. Popper, La logique de la découverte scientifique, trad. franc., Payot, 1973]; nem
que seja única ou totalmente científica [ver K. Popper, La quête inachevée, trad. franc., Presses Pocket,
reed. 1989, cap. 37], mas simplesmente que uma parte nela escapa da opinião – logo também da
tolerância.
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2. Maximes et réflexions, 19.
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3. V. Jankélévitch, Traité des vertus, II, 2, ed. Champs-Flammarion, 1986, p.92.
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4. La societé ouverte et ses ennemis, trad. franc., Seuil, 1979, t. 1, nº 4 do cap. 7, p. 222.
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5. J. Rawls, Théorie de la justice, II, 4, seção 35, p. 256 da trad. franc., Seuil, 1987.
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6. Op. cit., p. 93.
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7. Op. cit., p. 222. Ver também o texto já citado de Rawls, especialmente nas pp. 254-256.
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8. Ver Jankélévitch, op. cit., p. 93.
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9. Montesquieu, L'espirit des lois, III, 1-9; Hannah Arendt, Les origines du totalitarisme, t. 3: Le
système totalitaire, cap. 4: ["Idéologie et terreur: un nouveau type de régime"], pp. 203 ss. da trad.
franc., Seuil, col. "Points Politique", 1972. Sobre o caso particular do stalinismo, ver também Lê mythe
d'Icare, cap. 2.
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10. Définitions, Plêiade, Lês arts et lês dieux, p. 1095 [definição da tolerância].
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11. Op. cit., p. 224.
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12. Sobre tudo isso, que aqui posso apenas esboçar, ver Valeur et vérité [études cyniques], PUF,
1994.
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13. Montaigne, Essais, III, 11, p. 1032 da ed. Villey-Saulnier; Bayle, De la tolérance
[Commentaire philosophique sur ces paroles de Jésus-Christ "Contrains-les d'entrer"], da ed. Gros,
Presses Pocket, 1992, p. 189; Voltaire, Dictionnaire philosophique, verbete "Tolérance", pp. 362-363 da
ed. Pomeau, G.-F., 1964 [ver também, do mesmo autor, Traité sur la tolérance, especialmente os caps.
21, 22 e 25, pp. 132 ss. da ed. Pomeau, G.-F., 1989]. Essa idéia permanece, é claro, perfeitamente
atual: ver K. Popper, Conjectures et refutations, pp. 36-37 da trad. franc., Payot, 1985.
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14. Dictionaire philosophique, p. 386. Sobre a idéia de tolerância no século XVIII, ver E. Cassirer,
La philosophie dês Lumières, IV, 2, pp. 223-247 da trad. franc. [Fayard, reed. "Agora", 1986].
|
15. Spinoza, Traité théologico-politique [sobretudo o cap. 20]; Locke, Lettre sur la tolérance
[recentemente reeditada com uma longa e rica tradução de J.-F. Spitz, G.-F., 1992].
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16. Traité théologico-politique, cap. 20, p. 332 da ed. Appuhn, reed. G.-F., 1965.
|
17. Id., ed. Appuhn, p. 336.
|
18. Veritatis splendor [la splendeur de vérité], encíclica de João Paulo II, trad. franc., Mame/Plon,
1993, p. 95 [grifado por João Paulo II].
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19. Ver p. ex., id., pp. 4, 133, 156, 163, 172.
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20. Id., p. 150.
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21. P. ex., pp. 146-149. Ver também pp. 157, 170 e 180.
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22. Ibid., sobretudo nos §§ 35-37 [contra a autonomia] e 53 [contra o relativismo cultural e
histórico].
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23. Id., p. ex. §§ 29, 37 e 109-117.
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24. Id., p. 172.
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25. Id., p. 180 [grifo de João Paulo II].
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26. Id., p. 157. Ver também pp. 152-153.
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27. Id., pp. 109 a 112.
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28. Id., p. 182.
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29. Esquisse d'un tableau historique des progrès de l'esprit humain, VIII, p. 129 da ed. Prior, Vrin,
1970.
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30. Todas essas citações são extraídas do sempre precioso Vocabulaire technique et critique de la
philosophie de Lalande, Bulletin de la Société française de philosophie, 1902-1923, reed. PUF, 1968, pp.
1133-1136 [verbete "Tolérance"]. Há reticências do mesmo tipo no capítulo já citado de Jankélévitch
[pp. 86 ss.].
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31. Op. cit., pp. 86 e 94.
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32. F. Abauzit, na discussão da Sociedade Francesa de Filosofia, Vocabulaire de Lalande, p. 1134.
Mesma idéia em Jankélévitch, op. cit., p. 87.
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33. Op. cit., pp. 101-102.
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34. Cf. supra, cap. 1, pp. 15 ss. A expressão "pequena virtude", que utilizei a propósito da
polidez, é empregada por Jankélévitch a propósito da tolerância [op. cit., p. 86].
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