A Toler�ncia
A reprodu��o deste 13� cap�tulo do
livro Pequeno Tratado das Grandes
Virtudes
, de Andr�-Comte Sponville
foi gentilmente autorizada pela
Ed. Martins Fontes.
[p�gina 2/4]
Ao contr�rio do amor ou da generosidade, que n�o t�m limites intr�nsecos nem outra
finitude al�m da nossa, a toler�ncia �, pois, essencialmente limitada: uma toler�ncia infinita
seria o fim da toler�ncia! N�o dar liberdade aos inimigos da liberdade? N�o � t�o simples
assim. Uma virtude n�o poderia se isolar na intersubjetividade virtuosa: aquele que s� �
justo com os justos, generoso com os generosos, misericordioso com os misericordiosos
etc., n�o � nem justo nem generoso nem misericordioso. Tampouco � tolerante aquele que
s� o � com os tolerantes. Se a toler�ncia � uma virtude, como acredito e como geralmente
se aceita, ela vale por si mesma, inclusive para com os que n�o a praticam. A moral n�o �
nem um mercado nem um espelho. � verdade, claro, que os intolerantes n�o teriam nenhum
motivo para queixar-se de que se � intolerante para com eles. Mas onde j� se viu uma
virtude depender do ponto de vista dos que n�o a t�m? O justo deve ser guiado "pelos
princ�pios da justi�a, e n�o pelo fato de que o injusto n�o pode se queixar"
5. Do mesmo
modo, o tolerante, pelos princ�pios da toler�ncia. Se n�o se deve tolerar tudo, pois seria
destinar a toler�ncia � sua perda, tamb�m n�o se poderia renunciar a toda e qualquer
toler�ncia para com aqueles que n�o a respeitam. Uma democracia que proibisse todos os
partidos n�o democr�ticos seria muito pouco democr�tica, assim como uma democracia que
os deixasse fazer tudo e qualquer coisa seria democr�tica demais, ou antes, mal
democr�tica demais e, por isso, condenada � pois ela renunciaria a defender o direito pela
for�a, quando necess�rio, e a liberdade pela coer��o. O crit�rio n�o � moral, aqui, mas
pol�tico. O que deve determinar a tolerabilidade de determinado indiv�duo, grupo ou
comportamento n�o � a toler�ncia de que eles d�o mostra [porque ent�o todos os grupos
extremistas de nossa juventude deveriam ter sido proibidos, o que s� lhes daria raz�o], mas
sua periculosidade efetiva: uma a��o intolerante, um grupo intolerante etc., devem ser
proibidos se, e somente se, amea�arem efetivamente a liberdade, ou, em geral, as
condi��es de possibilidade da toler�ncia. Numa Rep�blica forte e est�vel, uma manifesta��o
contra a democracia, contra a toler�ncia ou contra a liberdade n�o basta para coloc�-las
em perigo; portanto n�o h� motivos para proibi-las e seria uma falta de toler�ncia quer�-lo.
Mas, se as institui��es est�o fragilizadas, se a guerra civil est� iminente ou j� come�ou, se
grupos facciosos amea�am tomar o poder, a mesma manifesta��o pode se tornar um perigo
verdadeiro; ent�o pode ser necess�rio proibi-la, impedi-la, at� pela for�a, e seria falta de
firmeza ou de prud�ncia renunciar a essa possibilidade. Em suma, depende dos casos, e
essa "casu�stica da toler�ncia", como diz Jank�l�vitch
6, � um dos problemas principais de
nossas democracias. Depois de ter evocado o paradoxo da toler�ncia, que faz com que a
enfraque�amos � for�a de querer estend�-la infinitamente, Karl Popper acrescenta o
seguinte:

"N�o quero dizer com isso que seja sempre necess�rio impedir a express�o de
teorias intolerantes. Enquanto for poss�vel enfrent�-las com argumentos l�gicos e
cont�-las com ajuda da opini�o p�blica, seria um erro proibi-las. Mas � necess�rio
reivindicar o direito de faz�-lo, mesmo pela for�a, se necess�rio, porque pode muito
bem acontecer que os partid�rios dessas teorias se recusem a qualquer discuss�o
l�gica e s� respondam aos argumentos com a viol�ncia. Seria necess�rio ent�o
considerar que, assim fazendo, eles se colocam fora da lei e que a incita��o �
toler�ncia � t�o criminosa quanto a incita��o ao assassinato, por exemplo."
7

Democracia n�o � fraqueza. Toler�ncia n�o � passividade.

Moralmente conden�vel e politicamente condenada, uma toler�ncia universal n�o seria,
pois, nem virtuosa nem vi�vel. Ou, para dizer de outro modo: h� muita coisa intoler�vel,
mesmo e sobretudo para o tolerante! Moralmente: o sofrimento de outrem, a injusti�a, a
opress�o, quando poderiam ser impedidos ou combatidos por um mal menor. Politicamente:
tudo o que amea�a efetivamente a liberdade, a paz ou a sobreviv�ncia de uma sociedade
[o que sup�e uma avalia��o, sempre incerta, dos riscos], logo tamb�m tudo o que amea�a
a toler�ncia, quando essa amea�a n�o � simplesmente a express�o de uma posi��o
ideol�gica [a qual poderia ser tolerada], mas sim um perigo real [o qual deve ser combatido
pela for�a, se necess�rio]. Isso deixa espa�o para a casu�stica, no melhor dos casos, e
para a m�-f�, no pior
8 � isso deixa espa�o para a democracia, para suas incertezas e para
seus riscos, que s�o prefer�veis, no entanto, ao conforto e �s incertezas de um
totalitarismo.
O que � totalitarismo? � o poder total [de um partido ou do Estado] sobre o todo [de uma
sociedade]. Mas, se o totalitarismo se distingue da simples ditadura ou do absolutismo, isso
se d� sobretudo por sua dimens�o ideol�gica. O totalitarismo nunca � o poder exclusivo de
um homem ou grupo: � tamb�m, talvez antes de mais nada, o poder de uma doutrina, de
uma ideologia [freq�entemente com pretens�es cient�ficas], de uma "verdade", ou pretensa
verdade. A cada tipo de governo seu princ�pio, dizia Montesquieu: como uma monarquia
funciona com base na honra, uma rep�blica na virtude e um despotismo no temor, o
totalitarismo, acrescenta Hannah Arendt, funciona com base na ideologia ou [visto de
dentro] na "verdade". � nisso que o totalitarismo � intolerante: porque a verdade n�o se
discute, n�o se vota e independe das prefer�ncias ou das opini�es de cada um. � como
uma tirania do verdadeiro. � nisso tamb�m que toda intoler�ncia tende ao totalitarismo ou,
em mat�ria religiosa, ao integrismo: n�o se pode pretender impor seu ponto de vista a n�o
ser em nome de sua suposta verdade, ou antes, � apenas nessa condi��o que tal
imposi��o pode se pretender leg�tima. Uma ditadura que se imp�e pela for�a � um
despotismo; se ela se imp�e pela ideologia, um totalitarismo. Compreende-se que a maioria
dos totalitarismos tamb�m sejam despotismos [afinal, a for�a, se necess�rio, tem de vir
socorrer a Id�ia...] e que, em nossas sociedades modernas, que s�o sociedades de
comunica��o, a maioria dos despotismos tendam ao totalitarismo [afinal, a Id�ia tem de dar
raz�o � for�a]. Doutrinamento e sistema policial caminham juntos. O caso � que a quest�o
da toler�ncia, que durante muito tempo foi apenas uma quest�o religiosa, tende a invadir o
todo da vida social; ou antes, pois � obviamente o inverso que se tem de dizer, o
sectarismo, de religioso que era no in�cio, tornou-se no s�culo XX onipresente e multiforme,
agora muito mais sob a domina��o da pol�tica do que da religi�o: da� o terrorismo, quando o
sectarismo est� na oposi��o, ou o totalitarismo, quando ele est� no poder. Dessa hist�ria,
que foi a nossa, talvez saiamos um dia. Por outro lado, n�o sairemos da intoler�ncia, do
fanatismo, do dogmatismo. O que � a toler�ncia? Alain respondia: "Uma esp�cie de
sabedoria que supera o fanatismo, esse tem�vel amor � verdade."
10
Devemos ent�o deixar de amar o verdadeiro? Seria dar um bonito presente ao totalitarismo
e quase proibir-se combat�-lo! "O sujeito ideal do reinado totalit�rio", observava Hannah
Arendt, "n�o � nem o nazista convicto, nem o comunista convicto, mas o homem para
quem a distin��o entre fato e fic��o [i.e., a realidade da experi�ncia] e a distin��o entre
verdadeiro e falso [i.e., as normas do pensamento] n�o existem mais."
11 A sof�stica faz o
jogo do totalitarismo: se nada � verdade, o que opor a suas mentiras? Se n�o h� fatos,
como acus�-lo de mascar�-los, de deform�-los e o que opor � sua propaganda? Pois o
totalitarismo, se pretende a verdade, n�o se pode impedir, cada vez que a verdade frustra
sua expectativa, de inventar outra, mais d�cil. N�o me deterei nisso: esses fatos s�o bem
conhecidos. O totalitarismo come�a como dogmatismo [pretende que a verdade lhe d�
raz�o e justifica seu poder] e acaba como sof�stica [chama de "verdade" o que justifica seu
poder lhe dando raz�o]... Primeiro a "ci�ncia", depois a lavagem cerebral. Que se trata de
falsas verdades ou de falsas ci�ncias [como o biologismo nazista ou o historicismo
stalinista], est� muito claro; entretanto o essencial, no fundo, n�o est� nisso. Um regime
que se apoiasse numa ci�ncia verdadeira � imaginemos, por exemplo, uma tirania dos
m�dicos � nem por isso seria menos totalit�rio a partir do momento em que pretendesse
governar em nome de suas verdades, porque a verdade nunca governa, nem diz o que deve
ser feito, nem proibido. A verdade n�o obedece, lembrei citando Alain, e � por isso que ela
� livre. Mas tampouco comanda, e � por isso que n�s o somos. � verdade que morreremos:
isso n�o condena a vida, nem justifica o assassinato. � verdade que mentimos, que somos
ego�stas, infi�is, ingratos... Isso n�o nos desculpa, nem inculpa os que, �s vezes, s�o fi�is,
generosos ou reconhecidos. Disjun��o das ordens: o verdadeiro n�o � o bem; o bem n�o �
o verdadeiro. Portanto, o conhecimento n�o poderia fazer as vezes de vontade, nem para
os povos [nenhuma ci�ncia, mesmo que verdadeira, poderia substituir a democracia], nem
para os indiv�duos [nenhuma ci�ncia, mesmo se verdadeira, poderia fazer as vezes da
moral]
12. � a� que o totalitarismo fracassa, pelo menos teoricamente, porque a verdade, ao
contr�rio do que pretende, n�o poderia lhe dar raz�o nem justificar seu poder. � certo,
entretanto, que uma verdade n�o se vota, mas ela tampouco governa; portanto, qualquer
governo pode ser submetido a um voto, e deve s�-lo.

pr�xima p�gina [3/4]
p�gina anterior [1/4]