A reprodu��o deste 13� cap�tulo do
livro Pequeno Tratado das Grandes
Virtudes
, de Andr�-Comte Sponville
foi gentilmente autorizada pela
Ed. Martins Fontes.
� um tema de disserta��o que foi proposto v�rias vezes no exame de baccalaur�at
[corresponderia a um exame final do nosso colegial; N. do T.]: "Julgar que h� o que seja
toler�vel � sempre dar prova de intoler�ncia?" Ou ent�o, numa forma diferente: "Ser
tolerante � tolerar tudo?" A resposta, nos dois casos, � evidentemente n�o, pelo menos
se quisermos que a toler�ncia seja uma virtude. Dever�amos considerar virtuoso quem
tolerasse o estupro, a tortura, o assassinato? Quem veria, nessa toler�ncia do pior, uma
disposi��o estim�vel? Mas, embora a resposta s� possa ser negativa [o que para um
tema de disserta��o, � antes uma fraqueza], a argumenta��o n�o deixa de colocar um
certo n�mero de problemas, que s�o de defini��es e de limites, e que podem ocupar
suficientemente nossos secundaristas, imagino, durante as quatro horas da prova... Uma
disserta��o n�o � uma sondagem de opini�o. � preciso responder, sem d�vida, mas a
resposta s� vale pelos argumentos que a preparam e que a justificam. Filosofar � pensar
sem provas [se houvesse provas n�o seria mais filosofia], mas n�o pensar qualquer coisa
[pensar qualquer coisa, de resto, n�o � mais pensar], nem de qualquer jeito. A raz�o
comanda, como nas ci�ncias, mas sem verifica��o nem refuta��o poss�veis. Por que n�o
se contentar, ent�o, com as ci�ncias? Porque n�o podemos: elas n�o respondem a
nenhuma das quest�es essenciais que nos colocamos, nem mesmo �s que elas nos
colocam. A quest�o: "� preciso fazer matem�tica?" N�o � suscet�vel de nenhuma
resposta matem�tica. A quest�o: "As ci�ncias s�o verdadeiras?" N�o � suscet�vel de
nenhuma resposta cient�fica. Como tampouco � isso � �bvio � as quest�es relativas ao
sentido da vida, � exist�ncia de Deus ou ao valor de nossos valores... Ora, como
renunciar a isso? Trata-se de pensar t�o longe quanto vivemos, portanto mais longe do
que podemos, portanto mais longe do que sabemos. A metaf�sica � a verdade da filosofia,
mesmo em epistemologia, mesmo em filosofia moral ou pol�tica. Tudo se sustenta, e nos
sustenta. Uma filosofia � uma conjunto de opini�es razo�veis: a coisa � mais dif�cil, e
mais necess�ria do que se cr�.
Dir-se-� que estou me afastando do meu tema. � que n�o estou fazendo uma
disserta��o. A escola n�o pode durar par sempre, ainda bem. De resto, n�o � certo que
tenha me afastado tanto assim da toler�ncia. Filosofar, dizia eu, � pensar sem provas. �
onde tamb�m a toler�ncia interv�m. Quando a verdade � conhecida com certeza, a
toler�ncia n�o tem objeto. N�o tolerar�amos que o contador que se engana em seus
c�lculos se recusasse a corrigi-los. Nem o f�sico, quando a experi�ncia diz que est�
errado. O direito ao erro s� � v�lido a parte ante; uma vez demonstrado o erro, este
deixa de ser um direito e n�o d� direito algum: perseverar no erro, a parte post, j� n�o �
um erro, mas uma falta. � por isso que os matem�ticos n�o precisam da toler�ncia. As
demonstra��es bastam para sua paz. Quanto aos que gostariam de impedir os cientistas
de trabalhar ou de se exprimir [como a Igreja contra Galileu], n�o � a toler�ncia que lhes
falta primeiramente: � a intelig�ncia e o amor � verdade. Primeiro conhecer. O verdadeiro
prima e se imp�e a todos, sem nada impor. Os cientistas necessitam n�o de toler�ncia,
mas de liberdade.
Que se trata de duas coisas diferentes, a experi�ncia basta para atestar. Nenhum
cientista pedir�, nem mesmo aceitar�, que tolerem seus erros, uma vez conhecidos, nem
suas incompet�ncias, na sua especialidade, uma vez reveladas. Mas nenhum aceitaria,
tampouco, que lhe ditassem o que deve pensar. N�o h� outra coer��o, para ele, al�m da
experi�ncia e da raz�o: n�o h� outra coer��o al�m da verdade pelo menos poss�vel, e �
isso que se chama liberdade de esp�rito. Qual a diferen�a em rela��o � toler�ncia? � que
esta [a toler�ncia] s� interv�m na falta de conhecimento; aquela [a liberdade de esp�rito]
seria antes o pr�prio conhecimento, enquanto nos liberta de tudo e de n�s mesmos. A
verdade n�o obedece, dizia Alain; � nisso que � livre, embora necess�ria [ou porque
necess�ria], e que torna livre. "A Terra gira em torno do Sol": aceitar ou n�o essa
proposi��o n�o decorre em absoluto, de um ponto de vista cient�fico, da toler�ncia. Uma
ci�ncia s� avan�a corrigindo seus erros; portanto n�o poder�amos pedir-lhe que os
tolerasse.
O problema da toler�ncia s� surge nas quest�es de opini�o. � por isso que ele surge com
tanta freq��ncia, e quase sempre. Ignoramos mais do que sabemos, e tudo o que
sabemos depende, direta ou indiretamente, de algo que ignoramos. Quem pode provar
absolutamente que a Terra existe? Que o Sol existe? E que sentido h�, se nenhum dos
dois existe, em afirmar que aquela gira em torno deste? A mesmo proposi��o que n�o tem
a ver com a toler�ncia, de um ponto de vista cient�fico, pode ter a ver com ela, de um
ponto de vista filos�fico, moral ou religioso. � o caso da teoria evolucionista de Darwin:
os que pedem que seja tolerada [ou, a fortiori, os que pedem que seja proibida] n�o
compreenderam em que ela � cient�fica
1; e os que gostariam de imp�-la autoritariamente
como verdade absoluta do homem e de sua g�nese, entretanto, dariam prova de
intoler�ncia. A B�blia n�o � nem demonstr�vel nem refut�vel; portanto, ou se cr� nela, ou
se tolera que se creia nela.
� a� que voltamos a encontrar nosso problema. Se devemos tolerar a B�blia, por que n�o
Mein Kampf? E, se toleramos Mein Kampf, por que n�o o racismo, a tortura, os campos
de concentra��o?
Uma toler�ncia universal seria, � claro, moralmente conden�vel: porque esqueceria as
v�timas, porque as abandonaria � sua sorte, porque deixaria perpetuar-se seu mart�rio.
Tolerar � aceitar o que poderia ser condenado, � deixar fazer o que se poderia impedir ou
combater. Portanto, � renunciar a uma parte de seu poder, de sua for�a, de sua c�lera...
Assim, toleramos os caprichos de uma crian�a ou as posi��es de um advers�rio. Mas isso
s� � virtuoso se assumirmos, como se diz, se superarmos para tanto nosso pr�prio
interesse, nosso pr�prio sofrimento, nossa pr�pria impaci�ncia. A toler�ncia s� vale
contra si mesmo, e a favor de outrem. N�o h� toler�ncia quando nada se tem a perder,
menos ainda quando se tem tudo a ganhar em suportar, isto �, em nada fazer. "Temos
todos bastante for�a", dizia La Rochefoucauld, "para suportar os males de outrem."
2
Talvez, mas ningu�m veria nisso toler�ncia. Sarajevo era, dizem, cidade de toler�ncia;
abandon�-la hoje [dezembro de 1993] a seu destino de cidade sitiada, de cidade
esfomeada, de cidade massacrada, n�o passaria, para a Europa, de covardia. Tolerar �
se responsabilizar: a toler�ncia que responsabiliza o outro j� n�o � toler�ncia. Tolerar o
sofrimento dos outros, tolerar a injusti�a de que n�o somos v�timas, tolerar o horror que
nos poupa n�o � mais toler�ncia: � ego�smo, � indiferen�a, ou pior. Tolerar Hitler era ser
seu c�mplice, pelo menos por omiss�o, por abandono, e essa toler�ncia j� era
colabora��o. Antes o �dio, antes a f�ria, antes a viol�ncia, do que essa passividade
diante do horror, do que essa aceita��o vergonhosa do pior! Uma toler�ncia universal
seria toler�ncia do atroz: atroz toler�ncia!
Mas essa toler�ncia universal tamb�m seria contradit�ria, pelo menos na pr�tica, e por
isso n�o apenas moralmente conden�vel, como acabamos de ver, mas politicamente
condenada. Foi o que mostraram, em problem�ticas diferentes, Karl Popper e Vladimir
Jank�l�vitch. Levada ao extremo, a toler�ncia "acabaria por negar a si mesma"
3, pois
deixaria livres as m�os dos que queiram suprimi-la. A toler�ncia s� vale, pois, em certos
limites, que s�o os de sua pr�pria salvaguarda e da preserva��o de suas condi��es de
possibilidade. � o que Karl Popper chama de "o paradoxo da toler�ncia": "Se formos de
uma toler�ncia absoluta, mesmo para com os intolerantes, e se n�o defendermos a
sociedade tolerante contra seus assaltos, os tolerantes ser�o aniquilados, e com eles a
toler�ncia."
4 Isso s� vale na medida em que a humanidade � o que �, conflitual,
passional, atormentada, mas � por isso que vale. Uma sociedade em que uma toler�ncia
universal fosse poss�vel j� n�o seria humana, e ali�s j� n�o necessitaria de toler�ncia.

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