Psicologia para Ativistas da Paz
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Cap�tulo 7
Integra��o Pessoal versus Esgotamento

Para sustentar a��o e filia��o, esses dois passos precisam ser integrados �s outras
rela��es sociais do ativista, incluindo fam�lia, amigos e meios de subsist�ncia. A quest�o
da integra��o pessoal � especialmente importante porque permite ao ativista sustentar
uma vida de envolvimento e evitar o perigo do esgotamento.

O risco de esgotamento � especialmente grande para os ativistas pela paz e justi�a
porque, mais que os outros, eles s�o confrontados por press�es intencionais vindas das
for�as do militarismo e da explora��o. Essas press�es podem tornar-se implac�veis, como
as que levaram ao assassinato de Martin Luther King Jr. A maioria dos grandes pacifistas
sofreu ataques por parte da pol�cia e da m�dia, e muitos foram mandados para a pris�o em
algum per�odo. A press�o se intensifica em alguns per�odos da hist�ria: n�o � por acaso
que durante a Primeira Guerra Mundial Eugene Victor Debs, Dorothy Day e Bertrand Russell
foram encarcerados; Emily Balch e A. J. Muste perderam seus empregos, e Debs, Day,
Russell e Jane Addams tiveram esgotamentos f�sicos e psicol�gicos.

Sustentar uma vida inteira de a��o pessoal e envolvimento exige uma rede de apoio social.
Assim, por exemplo, apesar da grande press�o contr�ria a ele, Martin Luther King Jr. foi
capaz de dar continuidade a seu trabalho com a ajuda de sua "equipe de terra". Esta
inclu�a n�o s� sua esposa Coretta e o restante de sua fam�lia nuclear, mas tamb�m sua
igreja, e a igreja Ebenezer Baptist de Atlanta:

Sua maravilhosa fam�lia da Ebenezer o incentivara e dera � sua organiza��o
apoio irrestrito durante todos os anos dif�ceis de sua luta. Eles eram
verdadeiramente o que ele chamava de "equipe de terra". Sem o seu
generoso trabalho de bastidores, ele n�o teria conseguido dar � na��o e ao
mundo a mesma lideran�a que de fato deu.

A "equipe de terra" de King era ideal em muitos sentidos. Al�m do apoio rec�m conquistado
no movimento de direitos civis da comunidade em Montgomery, como tamb�m no resto do
mundo, ele pode integrar isto com uma fam�lia amorosa e cooperativa, um sal�rio da igreja,
o apoio de suas atividades anteriores (no meio acad�mico), e as filia��es (da igreja).
Contudo, nem todos deram seu apoio imediato ao seu compromisso mais amplo de
oposi��o � Guerra do Vietn�, por este apoio foi necess�rio que ele e Coretta lutassem.

Eugene Victor Debs conseguiu levar o compromisso de uma vida toda com o apoio de uma
rede similar � "equipe de terra" de King. Como observa o bi�grafo Ray Ginger, a seguinte
descri��o do apoio da esposa de Debs tamb�m se aplicaria ao apoio de seus pais, seu
irm�o Theodore, e seu cunhado Arthur Baur:

Ela partilhava os dias tempestuosos sem queixas, e quando voltava depois
de muitas semanas de viagens exaustivas, minha casa estava gostosa e
aconchegante, ela cuidava de mim com todo carinho at� que eu estivesse
descansado para uma nova viagem (...). Durante anos ela era nossa
secretaria de estado. Ela escrevia todas as minhas cartas em letra corrida
antes do advento da m�quina de escrever, e eu tinha muita
correspond�ncia. Ela andava na neve alta at� o escrit�rio quando eu estava
fora viajando, acendia a lareira, tirava as cinzas, limpava o escrit�rio,
respondia as cartas, despachava caixas e caixas de livros para mim e para
outros, depois voltava para fazer as refei��es, arrumar e cuidar da casa.

Para Debs como para King, a quest�o central foi manter a continuidade do apoio quando
ele ampliou o escopo de seu compromisso do sindicalismo para o socialismo em 1896, e
novamente para a oposi��o � Primeira Guerra Mundial em 1917. Segundo a biografia
escrita por Ginger, a fam�lia nuclear de Debs, assim como muitos de seus camaradas do
sindicato, apoiaram sua ades�o ao socialismo. Mas quando ele se op�s � Guerra, viu-se
desprovido desse apoio, o que talvez explique porque ele se mostrou "hesitante e
desanimado", "indisposto" e "perdido" nos meses que precederam seu famoso discurso
contra a guerra em Canton, Ohio, depois do qual foi preso, julgado e sentenciado.

Para sustentar a luta, os ativistas devem dividir o fardo da responsabilidade pol�tica com
outras pessoas de sua organiza��o
- desenvolvendo relacionamentos de ajuda m�tua.
Caso contr�rio todo o "peso do mundo" parece repousar sobre seus ombros apenas, e
eventualmente o estresse se torna grande demais para uma s� pessoa. Parece que foi isto
o que levou Helen Caldicott a anunciar na confer�ncia nacional da WAND de 1985, que ela
estaria se retirando da lideran�a ativa da organiza��o que fundara:

Tenho trabalhado nesses �ltimos 16 anos (...), viajado sem cessar, dormido
em camas estranhas, proferido dois a tr�s discursos por dia, lidado com a
imprensa o dia inteiro, tenho tido que falar a audi�ncias e emocion�-las a
ponto de faz�-las chorar e mudar suas vidas naquela noite ou naquele dia.
Eu sonho com isso todas as noites, sei que muitos de voc�s tamb�m
sonham. Acordo suando frio, assustada, ansiosa, culpada. Sinto que o
mundo inteiro repousa sobre meus ombros. Bem, isto est� certo, � o que
deveria sentir, mas estou afundando nisso, estou me afogando nisso. Tenho
que parar.

A exaust�o n�o � apenas a aus�ncia da sensa��o de apoio social, � tamb�m um estado
psicol�gico especial que poder� aprofundar-se aos poucos at� a depress�o seguida de
inatividade, des-afilia��o, desespero, deboche, culpa, esgotamento, doen�a f�sica ou
nervosa. Todos esses sintomas s�o descritos por Dorothy Day quando fala de sua "longa
solid�o". O processo psicol�gico pelo qual as fases da depress�o v�o se aprofundando
cada vez mais, como um c�rculo vicioso, ainda n�o foi totalmente entendido pela ci�ncia.
Sem d�vida, e conforme escrevi num trabalho t�cnico, ele envolve mudan�as hormonais
profundas, que modificam toda a resposta fisiol�gica �s situa��es sociais.

Ao descrever sua "longa solid�o" Dorothy Day explicita suas causas sociais e a cura
integrativa que foi necess�ria:

Estava sozinha, mortalmente sozinha. E descobri ent�o, como descobri
muitas outras vezes, que principalmente as mulheres s�o seres sociais, que
n�o se contentam somente com marido e filhos, mas precisam de uma
comunidade, um grupo, uma troca com os outros.

"S� um marido", no caso de Dorothy Day, era Forster, com quem ela se casara no civil e
tinha uma filha chamada Tamar. Mas Forster n�o apoiava sua atividade pois ele era um
anarquista cuja raiva voltara-se para dentro ao inv�s de ser usada para estimular a a��o
(veja cita��o no cap�tulo 12). Por fim, Dorothy Day encontrou Peter Maurin e juntos
constru�ram o tipo de comunidade que ela buscava. Maurin ascendeu nela "um sentido da
sua pr�pria capacidade de trabalho, de realiza��o". Maurin chamava a isto de "uma
s�ntese de cult, cultura e cultivo". Para Dorothy Day significava uma s�ntese de todas as
suas atividades e filia��es pregressas: ativismo social, jornalismo, fam�lia e filia��o � igreja
Cat�lica Apost�lica Romana.

A integra��o pessoal n�o oferece apenas apoio pr�tico, mas produz tamb�m uma rica e
gratificante transforma��o psicol�gica. Integrando cada nova filia��o com suas redes de
relacionamento pessoal pr�vias King, Debs e Day (depois de encontrar Maurin)
conseguiram crescer n�o s� publicamente em estatura e for�a, mas tamb�m na
individualidade privada. N�o foram "engolidos" por suas novas filia��es e n�o perderam sua
individualidade em nenhum pesadelo como o do medo de "multid�es entusiasmadas" que
impediu Bertrand Russell de dar o passo da filia��o: ao contr�rio, atrav�s da filia��o eles
desenvolveram personalidades ainda mais singulares.

Quando organiza��es, como cultos pol�ticos ou religiosos, desestimulam a integra��o
pessoal de seus membros, contribuem para o mito de que a filia��o requer que as pessoas
percam sua individualidade. O caso extremo do processo de despersonaliza��o � o ex�rcito
norte-americano, onde se "amansa" os novos recrutas privando-os de todos os
relacionamentos e filia��es pessoais e colocando-os num uniforme padr�o.

Muitos cultos religiosos e pol�ticos surgidos nestes �ltimos anos adotam procedimentos
despersonalizantes similares. Existe o risco de que organiza��es do movimento pacifista
adotem tais m�todos que, em longo prazo enfraquecer�o em vez de fortalecer os novos
integrantes. Por exemplo, temos o sonho de Muste de um "companheirismo" em que ele
vislumbrava "a forma��o de um grupo de evangelistas, em parte segundo os moldes dos
antigos crist�os (...) livres (...) da ordem vigente (...), e vestindo-se de maneira uniforme
(embora n�o muito, como os uniformes militares ou h�bitos clericais) para simbolizar sua
unidade interna e seu rep�dio ao mundo". N�o � de se admirar, diante de tal vis�o, que
Muste mais tarde tenha se tornado v�tima do sectarismo, sob o qual sua an�lise se tornou
estreita e desligada do momento hist�rico.

Um dos m�todos utilizados pelo Estado para reprimir movimentos de paz e justi�a � colocar
as organiza��es na ilegalidade e for�ar seus membros � atividade subterr�nea, onde a
integra��o pessoal � muito mais dif�cil de alcan�ar. Por exemplo, na biografia de Sandy
Pollack n�o se encontra qualquer descri��o da luta que foi para ela integrar sua filia��o
com o Partido Comunista (que deve ter sido at� certo ponto secreta) com suas outras
rela��es sociais. A tens�o gerada por tal esfor�o pode ajudar a explicar porque ela
floresceu durante seu trabalho internacional em movimentos de solidariedade com Cuba e
Nicar�gua, onde ela podia mostrar abertamente que se orgulhava de ser comunista.

A repress�o da sexualidade em nossa sociedade torna a integra��o pessoal mais dif�cil. �
tal a magnitude desse problema que a profiss�o de psicanalista desenvolveu-se bastante
para lidar com ele. O custo pessoal da repress�o sexual de nossa sociedade foi muito bem
descrita por W. E. B. Du Bois:

Um dos aspectos da minha vida pregressa suscita lembran�as carregadas de
sentimentos conflitantes: s�o as quest�es de amizade e sexo. (...) de fato
o maior defeito da minha educa��o em New England foi a indesculp�vel
ignor�ncia sobre o sexo (...). Na minha cidade natal o sexo era
deliberadamente exclu�do das conversas, e se poss�vel do pensamento (...).
Como professor nos bairros rurais do Tennessee, fui literalmente estuprado
pela esposa infeliz que era minha senhoria. Daquele tempo at� a faculdade
em Harvard e os estudos na Europa, passei por uma batalha incessante e
desesperada para manter o instinto sexual sob controle. Uma breve
experi�ncia com a prostitui��o em Paris afrontou meu senso de dec�ncia.
Vivi com certa regularidade com uma balconista em Berlim, mas tinha
vergonha. Quando voltei aos Estados Unidos para lecionar, tive que
testemunhar a coniv�ncia de certos colegas que tra�am suas esposas.
Casei-me de susto, literalmente, antes de ter condi��es de sustentar uma
fam�lia.

O custo da repress�o sexual explica porque o casamento de 53 anos de Du Bois n�o
estava bem integrado ao seu desenvolvimento pol�tico. Ele "sofria da desvantagem b�sica
dos casamentos americanos modernos: uma diferen�a de objetivos e fun��es entre seus
membros". E a repress�o sexual de nossa cultura tamb�m ajuda a explicar porque Du Bois
foi levado a cometer um grave erro ao dispensar "um rapaz, h� muito tempo meu disc�pulo
e aluno, e ent�o meu colaborador e sucessor em parte de minha obra" por ter sido este
preso em virtude de comportamento homossexual. Depois disso, Du Bois relata: "passei
dias pesados arrependido de meu ato".

Tanto Jane Addams e Emily Balch podem ter sido limitadas em suas tentativas de atingir
integra��o pessoal em seu trabalho contra a guerra pelas atitudes repressivas em rela��o
� sexualidade, inclusive homossexualidade, de nossa sociedade. Ambas foram v�timas de
esgotamento. Quando Jane Addams foi cruelmente atacada em virtude de sua oposi��o �
Primeira Guerra Mundial, abandonada por muitos de seus amigos de trabalho social, ela
adoeceu e ficou "tr�s anos semi-inv�lida" e "francamente v�tima de uma sensa��o de
opr�brio social (...) muito semelhante � autocomisera��o". E Emily Balch sofreu de fadiga
nervosa, que a obrigou a interromper seu trabalho por longos per�odos de tempo. Embora
ambas tivessem o apoio de uma companheira �ntima do sexo feminino, Mary Rozet Smith no
caso de Jane Addams e Helen Cheever no caso de Emily Balch, parece prov�vel que a
moral sexual vigente tenha limitado em certa medida o grau em que elas puderam ser
integradas plenamente �s vidas dessas ativistas. Emily Balch lamentava ter tido apenas a
"meia vida de uma mulher solteira". Se seus relacionamentos eram homossexuais (e talvez
nunca saibamos), n�o puderam ser assumidos publicamente nem integrados � suas vidas
pol�ticas. Como explicou sua amiga comum Alice Hamilton � bi�grafa de Addams, tais
assuntos n�o eram discutidos naqueles dias, e "o pr�prio fato de voc� levantar esse
assunto � indicativo da separa��o entre a sua gera��o e a dela".

O trabalho de ganhar a vida � transformado quando se integra ao trabalho pela paz e pela
justi�a. Levantar dinheiro para "o movimento" n�o � o mesmo que levantar dinheiro para si
e sua fam�lia. Ele sai do dom�nio privado "ego�sta" da sociedade capitalista e entra no
dom�nio coletivo, altru�sta, tornando-se parte de nosso trabalho pol�tico. Dorothy Day
descreve como, depois de fundar o Catholic Worker (Trabalhador Cat�lico), ela partiu em
viagem para angariar contribui��es a fim de manter o jornal. E Helen Caldicott conta como,
depois de juntar-se ao movimento dos m�dicos, ela abordava seus colegas m�dicos em
reuni�es pedindo assinaturas para peti��es, e um d�lar para imprimir as peti��es.

Para a maioria das pessoas, inclusive muitos ativistas pela paz e pela justi�a, o passo da
integra��o pessoal � o mais alto grau de desenvolvimento da consci�ncia. Mas o
movimento de paz precisa lideran�as, e para tanto � necess�rio um grau mais elevado de
consci�ncia: a consci�ncia mundial hist�rica.


Cap�tulo 8
Consci�ncia Mundial Hist�rica versus Sectarismo

A consci�ncia mundial hist�rica, o mais alto n�vel de consci�ncia, n�o � uma qualidade de
um indiv�duo agindo sozinho, mas aquela de um l�der trabalhando com filia��o. � um tipo de
lideran�a que permite que a��o e filia��o pela paz e justi�a se desenvolvam no sentido da
efic�cia e progresso em vez de limita��o e sectarismo. � a habilidade que o l�der tem de
saber como se sentem as pessoas, analisar as for�as e vetores de todas as for�as
pol�ticas, e organizar e ampliar o car�ter pol�tico do movimento para que esteja no
compasso do momento hist�rico, o que, nos dias atuais, significa a aboli��o da guerra.

Em primeiro lugar, um l�der deve saber como as pessoas est�o se sentindo. Isso s� se
obt�m atrav�s de uma longa experi�ncia de trabalho direto com elas. A lideran�a de
Eugene Victor Debs se origina de tal experi�ncia:

Eu havia alimentado a fornalha da locomotiva, sido exposto � dureza da
ferrovia. Eu ficava com os rapazes nas longas vig�lias, ao lado da locomotiva
quebrada, e muitas vezes os levava de volta para mulher e filhos, seus
corpos machucados e sangrando. Como n�o sentiria o fardo de suas faltas?
Como deixaria de sentir, fundo no peito, germinar a semente da agita��o?

Seus anos de servi�o para o povo permitiram a Jane Addams desempenhar um papel de
lideran�a no movimento de paz:

(...) em todas as classes e n�veis sociais e em todo o c�rculo de ocupa��es
leg�timas, homens e mulheres maduras, com for�a moral e conhecimento
especializado, que em virtude de terem se tornado �teis na vida, podem
contribuir enriquecendo o padr�o da cultura humana (...). Aquele que quer
incorporar essas experi�ncias � heran�a comum deve (...) ter grande
familiaridade com o esp�rito humano e suas produ��es.

Em segundo lugar, um l�der deve compreender o poder e vetores de todas as for�as
pol�ticas de forma sist�mica, n�o superficial. Tal compreens�o deve ser "radical" � chegar
� raiz das coisas � suas causas econ�micas e sociais. N�o deve contentar-se com um
discurso de mudan�as superficiais, mas precisa reconhecer que a paz exige mudan�as
econ�micas e pol�ticas fundamentais dentro da sociedade. Nas palavras de Emily Balch:

Quando come�ou a guerra em 1914, vi isto principalmente como uma
interrup��o absurda do progresso social e econ�mico. Sentia que era
preciso livrarmo-nos da guerra para que sua amea�a n�o interrompesse nem
distorcesse o curso desse progresso. S� aos poucos pude entender, ao
menos parcialmente, qu�o profundamente a guerra est� entrela�ada com
todo nosso sistema econ�mico e social, nossa escala de valores, nossas
id�ias do que � certo e do que tem suprema import�ncia. N�o vejo qualquer
chance de progresso social sem que haja mudan�as fundamentais tanto do
lado econ�mico quanto pol�tico, substituindo anarquia nacional por
coopera��o organizada dos povos em prol de seu interesse comum, e
substituindo a anarquia econ�mica, baseada na busca de lucro pessoal, por
um grande desenvolvimento do esp�rito de coopera��o.

Em retrospectiva, Eugene Vitor Debs percebeu que esta perspectiva radical lhe faltava na
mal sucedida lideran�a do Sindicato Americano dos Ferrovi�rios.

Minha convic��o suprema era de que se ao menos os ferrovi�rios se
organizassem em todos os ramos do of�cio, e agissem todos juntos e unidos,
poderiam corrigir suas faltas e regular as condi��es de seu emprego (...). Eu
viria a compreender mais tarde o funcionamento do sistema capitalista, os
recursos de seus senhores e as fraquezas de seus escravos (...). Tudo isso
me parece estranho agora, olhando para tr�s, que minha vis�o estivesse
fixada num �nico ponto objetivo e que em absoluto n�o consegui enxergar o
que hoje me parece mais claro que o sol do meio-dia (...).

A consci�ncia mundial hist�rica requer o que Helen Caldicott chamou de "uma vis�o global
da realidade e um senso de responsabilidade moral pelo futuro da humanidade". Jane
Addams chamava a isto de "uma nova consci�ncia, uma consci�ncia mundial nascente".

Quer gostemos disso ou n�o, nossa pr�pria experi�ncia � cada vez mais influenciada pelas
experi�ncias de pessoas de todos os cantos; o mundo moderno est� desenvolvendo uma
consci�ncia quase m�stica da continuidade e interdepend�ncia da humanidade. H� um vivo
senso de a��o e rea��o inesperada, mas inevit�vel entre n�s e os outros que est�o
vivendo neste planeta na mesma �poca. Talvez nenhuma apresenta��o seja mais dif�cil
que esta que trata do crescimento de uma nova consci�ncia, essa consci�ncia mundial
nascente...

Como disse Emily Balch, essa vis�o global da realidade n�o � uma vis�o do que j� existe,
mas uma "tend�ncia do desenvolvimento" em dire��o a uma "civiliza��o planet�ria".

Ao olhar para tr�s, n�o tenho a sensa��o que nossos esfor�os foram
absurdos. Ao contr�rio, tenho a impress�o de que apesar do mundo n�o
estar pronto para entend�-los, a tend�ncia do desenvolvimento corre
obviamente e de forma certeira para o fim que buscamos � uma civiliza��o
planet�ria.

No desenvolvimento da consci�ncia mundial hist�rica um fator importante � a viagem pelo
mundo, na qual a viagem � usada como meio de estudar e refletir tanto sobre a dire��o
que tomam os eventos mundiais, quanto sobre o meio de atingir mudan�as sociais
localmente. Como lembra Du Bois:

O trabalho mais importante da d�cada, agora que olho em retrospecto, foi
minha viagem. Antes de 1918 j� havia viajado tr�s vezes para a Europa,
mas agora entre 1918 e 1928 fiz quatro viagens de extraordin�rio
significado: para a Fran�a logo no fim da guerra e durante o Congresso de
Versailles; para a Inglaterra, B�lgica, Fran�a e Genebra nos prim�rdios da
Liga das Na��es; para a Espanha, Portugal e �frica em 1923 e 1924; e para
a Alemanha, R�ssia e Constantinopla em 1926. Dificilmente conseguiria
compor uma parte mais vital do quadro do mundo moderno sem aquelas
viagens emocionantes. Elas me deram profundidade de conhecimento e
amplitude de vis�o, que foram de valor incalcul�vel para entender e julgar a
condi��o da modernidade, e principalmente o problema racial na Am�rica.

A consci�ncia mundial hist�rica � resultado do esfor�o em planos cada vez mais amplos de
significado, � medida que o desenvolvimento do indiv�duo se torna cada vez mais imbricado
no desenvolvimento de toda a humanidade. Descrevendo o desenvolvimento de Martin
Luther King Jr. sua esposa, Coretta, o compara a um pergaminho que se desenrola:

Quando Martin recebeu o Pr�mio Nobel (...), e fez o discurso sobre o Vietn�, tive a forte
sensa��o que isto era o come�o de um trabalho maior para ele, que se tornaria algo maior
do que o que pod�amos conceber naquela �poca. Ao longo de toda nossa, luta uma fase
levava � outra. � medida que os anos foram passando, era como ver um pergaminho se
desenrolando, a gente v� mais e mais � medida que desenrola. Havia um padr�o e um
processo operando para o desenvolvimento da humanidade.

Para King havia uma progress�o de um patamar de trabalho pelos direitos civis em favor
dos afro-americanos, para um patamar mais amplo pela justi�a e pela classe trabalhadora
(ele foi morto em M�nfis onde falava em favor da greve dos lixeiros, que ele definia como
n�o mais uma guerra racial, mas agora uma guerra de classes "), e deste para o patamar
mais amplo de todos, sua oposi��o � guerra do Vietn� e trabalho pela paz e liberdade de
todos os povos do mundo".

O tributo de King � consci�ncia mundial hist�rica de Du Bois, no cent�simo anivers�rio de
seu nascimento, bem poderia ser um tributo a ele mesmo:

Concluindo, permita-me dizer que a maior virtude do Dr. Du Bois era sua
empatia e comprometimento com todos os oprimidos, e sua insatisfa��o
divina com todas as formas de injusti�a. Hoje ainda somos desafiados a ser
insatisfeitos. Que sejamos insatisfeitos at� que cada homem possa ter
alimento e condi��es materiais para seu corpo, cultura e educa��o para sua
mente, liberdade e dignidade humana para seu esp�rito (...). Estejamos
insatisfeitos at� que nossos irm�os do terceiro mundo, �sia, �frica e
Am�rica Latina, n�o mais sejam v�timas da explora��o imperialista, mas
sejam soerguidos da longa noite da pobreza, analfabetismo e doen�a.
Estejamos insatisfeitos at� que esta elegia c�smica seja transformada em
salmo criativo da paz e que a "justi�a des�a como as �guas de um poderoso
caudal".

No caso de Du Bois, a jornada em dire��o � consci�ncia hist�rica mundial o levou de um
patamar de a��o a outro. Superou uma vis�o estreita, sect�ria, e limitada � quest�o das
rela��es raciais (ele apoiara a primeira guerra mundial como oportunidade de promover
afro-americanos a oficiais militares), e alcan�ou a uma consci�ncia amadurecida, que
incluiu o mundo inteiro e todas as ra�as em seu escopo:

Vacilei durante anos, advogando o socialismo, primeiro como programa
racial; depois como esfor�o nacional, e depois da viagem de 1958, como
passo definitivo para unir os movimentos do mundo todo em dire��o a um
socialismo que levasse ao comunismo, que abra�asse o mundo das pessoas
de cor e o mundo dos brancos que estivessem dispostos a renunciar ao
colonialismo e ao capitalismo privado. Mas, como disse, essa decis�o se
produziu muito lentamente.

Por ter reconhecido o fato de que o socialismo se tornara a for�a de paz dominante, e por
ter agido de acordo (Du Bois liderou o movimento que recolheu milh�es de assinaturas
Norte Americanas pelo Apelo de Paz de Estocolmo), foi levado a julgamento aos 83 anos
de idade como "agente" russo. A vis�o de Du Bois alcan�ava bem mais longe que a de seus
cr�ticos, no entanto, ele n�o via apenas o papel vital desempenhado pelos pa�ses
socialistas para o avan�o da paz, mas tamb�m o papel importante a ser desempenhado
pelos movimentos emergentes, n�o alinhados com o socialismo, na constru��o da paz:

(...) a Pan-Africa, trabalhando conjuntamente atrav�s de suas unidades
independentes, deveria buscar o desenvolvimento de uma nova economia
africana e centro cultural, situado entre a Europa e a �sia, que recebesse
contribui��es destas e oferecesse contribui��es a elas. Deveria dar �nfase
� paz, n�o fazer qualquer alian�a militar e recusar-se a lutar para resolver
pend�ncias europ�ias. (...) deveria tentar construir um socialismo fundado
na antiga vida comunit�ria africana (...) em coopera��o pac�fica e sem
pretender ditar como o socialismo deve ou pode ser atingido em
determinado tempo e lugar.

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