Os Cinco Saberes do Pensamento Complexo
[Pontos de encontro entre as obras de Edgar Morin,
Fernando Pessoa e outros escritores]
Humberto Mariotti
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Saber questionar equivale a desencadear um processo de co-educa��o. Krishnamurti
costumava dizer que o verdadeiro problema da educa��o s�o os educadores. Marx
preocupava-se em saber quem os educaria. Se partirmos do princ�pio de que o
verdadeiro papel dos educadores � formular perguntas adequadas, segue-se que quem
os educa s�o os educandos, ao dar-lhes as respostas.

N�s somos o mundo. Quando perguntamos algo a algu�m, � o pr�prio mundo que se abre
para essa pessoa, n�o para desafi�-la ou constrang�-la, mas para proporcionar-lhe uma
oportunidade de modificar-se e, a partir da�, modific�-lo. Do mesmo modo, ao
recebermos a resposta � do mundo que ela vem. Nesse sentido, conversar com o outro
significa que o mundo est� conversando consigo pr�prio por nosso interm�dio � � por
isso que conversar significa estar-com, encontrar-se, religar-se, descondicionar-se,
libertar-se. Eis a ess�ncia da autoprodu��o. �

George Johnson assinala que quando lemos algo, ou quando conversamos com algu�m,
essa experi�ncia produz modifica��es f�sicas em nosso c�rebro (isto �, mudan�as de
estrutura), que se manifestam pela forma��o de novos circuitos neuronais e
mobiliza��es de mem�ria, que por sua vez levam a din�micas diferenciadas. Logo, a
multiplica��o dessas conex�es e sua organiza��o em forma de rede constituem o ponto
central de qualquer processo importante de transforma��o. Muitas vezes, absorvidos
com a possibilidade do emprego de m�todos e t�cnicas mais elaborados, esquecemo-nos
de que a fluidez e a naturalidade das conversa��es comp�em o que h� de mais simples
e importante para essa finalidade.

Se o que define uma cultura � o conte�do das redes de conversa��o que a percorrem e
comp�em, saber conversar � saber construir um universo cultural. Conversar �
aprender, mesmo quando por um motivo ou por outro nosso interlocutor n�o � capaz de
nos dar a resposta que consideramos "certa". Dizer ao outro o que ele quer ouvir � e
faz�-lo retrucar na mesma medida � n�o � conversar, � monologar.

A conversa��o constitui uma oportunidade para que as emo��es de cada interlocutor se
reorganizem. Como diz Maturana, ela promove o entrela�amento do emocional com o
racional. Da� a import�ncia dos pequenos grupos. Eles representam a amplia��o dos
espa�os de liberdade individual e, em conseq��ncia, das possibilidades de aprender a
conversar.�

A diversidade de opini�es que caracteriza os grupos assim formados faz com que esses
espa�os de cria��o jamais se fechem nem sejam preenchidos. Eles precisam ficar
sempre abertos, porque constituem uma regi�o de troca e enriquecimento. Educar-se �
adquirir a capacidade de identificar e ampliar ainda mais os espa�os de conversa��o e,
sobretudo, mant�-los sempre perme�veis.

A linguagem n�o acontece nos interlocutores e sim no "entre", no espa�o comum criado
entre eles e por eles. Ocorre no intervalo de liberdade h� pouco mencionado. Al�m
disso, as modifica��es estruturais produzidas pela linguagem n�o se limitam ao campo
verbal nem ao momento em que ocorrem as conversas. �

J� sabemos, com Humberto Maturana, que a linguagem promove modifica��es
estruturais porque coordena (organiza, sintetiza) os nossos comportamentos e, ao
relat�-los, contribui para que eles se modifiquem. As intera��es (os encontros)
deflagram mudan�as nos sistemas vivos: s�o as coordena��es. A linguagem coordena e
relata essas coordena��es. Ela �, portanto, a coordena��o das coordena��es. �

Muitas das dimens�es de nossas intera��es s�o inconscientes, mas nem por isso deixam
de participar dessas rela��es. Se � certo que boa parte da nossa conduta �
determinada pelo inconsciente, isso n�o quer dizer que nos devamos entregar por
completo �s prescri��es dessa parte oculta de nossa psique.�

Podemos lidar com elas de v�rios modos. O principal consiste em fazer com que os
conte�dos inconscientes venham � tona, para que possamos tentar examin�-los e,
dentro do poss�vel, fazer escolhas. Para a promo��o dessa emerg�ncia a conversa��o �
indispens�vel. Por isso � que afirmo que saber conversar � saber ser livre.

Saber Amar
Se o inferno s�o os outros, a felicidade tamb�m o �. Se n�o existe inferno sem os
outros, tamb�m n�o h� felicidade sem eles. Amar � algo que j� se nasce sabendo. Em
geral, os pais tentam educar as crian�as para aperfei�o�-las nesse saber.�
Procuram criar um ambiente onde elas tenham oportunidades de desenvolver aquilo para
o qual nasceram, isto �, respeitar os outros e o mundo natural.

Mas sabemos que ao crescer elas se v�em obrigadas a enfrentar uma cultura que � o
oposto de tudo isso. T�m de desaprender a amar, e disso se encarregam a
racionaliza��o, as ideologias e o conformismo, cuja estrat�gia � transformar o amor em
um produto raro, dif�cil de obter e, por isso mesmo, muito valorizado no "mercado". Esse
fen�meno n�o afeta com a mesma intensidade os dois sexos, como veremos logo mais.

Jean-Jacques Rousseau12 fala do amour de soi (amor de si) e do amour propre (amor-
pr�prio). No primeiro caso, o amor precede as posturas morais e se relaciona ao mundo
dos instintos. � o amor pelo que somos, mas que se amplia em termos de amor ao
pr�ximo. Por outro lado, o amor pr�prio � o sentimento que nos leva a comparar-nos aos
outros e julgar-nos superiores a eles.

Esses conceitos nos proporcionam mais uma forma de definir a cultura do patriarcado,
na qual prevalece o amor pr�prio, e tamb�m a cultura matr�stica, em que predomina o
amor de si, que leva ao sentimento de participa��o, � aceita��o do corpo e da
sexualidade e � legitima��o do outro. No caso do amor pr�prio predomina a repress�o, a
vergonha do corpo e da sexualidade e a �nsia pelo dom�nio do mundo natural. N�o �
dif�cil, pois, compreender porque a mercantiliza��o do amor e da sexualidade constitui
uma das faces mais destacadas da cultura patriarcal.

Rousseau fala de outro sentimento, a que deu o nome de id�ia de considera��o, que �
uma esp�cie de intermedi�rio entre os anteriores. O fil�sofo mostra como � vital para os
homens viver em sociedade. Essa condi��o se manifesta pela necessidade que os seres
humanos t�m de serem vistos uns pelos outros. Vem da� a id�ia de que o outro � um
complemento indispens�vel do eu, o que coloca a sociabilidade no pr�prio cerne da
situa��o humana.

Humberto Maturana e Gerda Verden-Z�ller sustentam que somos seres dependentes do
amor. Vivemos, por�m, em uma cultura que se caracteriza pela agress�o e pelas guerras
� uma cultura de desamor. A quest�o que esses autores prop�em � a seguinte: os
seres humanos s�o animais geneticamente agressivos e �s vezes amorosos, ou s�o
animais amorosos que �s vezes se tornam agressivos?�

H� outra maneira de formular a pergunta: os seres humanos s�o animais geneticamente
patriarcais, que �s vezes agem de modo matr�stico, ou s�o animais geneticamente
matr�sticos e culturalmente tornados patriarcais? Se recorrermos � teoria do c�rebro
tri�nico, de Paul Mac Lean, a quest�o poder� ser enunciada ainda de outra forma:
somos animais guiados pelas determina��es do c�rebro reptiliano (agressivo), que �s
vezes agem segundo as determinantes do c�rebro mam�fero (afetivo), ou o contr�rio?�

Pouco importa a forma de indagar. Sabemos que Maturana afirma que nossa
agressividade � (ou ainda �) de origem cultural. Sustenta, al�m disso, que somos seres
que vivem na linguagem. Se esta desaparecesse, tamb�m desaparecer�amos como
humanos. Essas no��es permitem entender de outra forma o que foi dito h� pouco. Se
as crian�as j� nascem sabendo amar (isto �, se s�o biologicamente amorosas e �s
vezes agressivas), as conversa��es da cultura em que vivem � que fazem com que elas
desaprendam o amor. Em conseq��ncia, passam a comportar-se de forma agressiva,
mesmo sendo geneticamente amorosas.

Como se v�, o racioc�nio de Maturana � biol�gico, e v� o amor n�o como uma dimens�o
excepcional ou virtude transcendente, mas como um fen�meno da natureza. Nesse
sentido, a vida amorosa � uma forma de exercermos essa condi��o. � o que ele
denomina de biologia do amor.

Mas esse reducionismo inicial abre caminho para muitas reamplia��es. Amar o outro
significa reconhec�-lo e legitim�-lo, sem que ele precise de nenhum modo justificar a
sua humanidade. Todavia, vivemos em uma cultura em que prevalecem o n�o-
reconhecimento e a exclus�o. Nesse caso, o outro n�o � aceito como humano a priori:
reservamos esse privil�gio para n�s pr�prios e, a partir da�, pretendemos impor-lhe os
nossos valores. Isso significa que passamos a exigir do outro mais e mais provas de sua
humanidade e, por mais que ele as forne�a, estaremos sempre prontos a desqualific�-
las.

Cabem aqui mais algumas reflex�es. Se estamos a tanto tempo orientados para o
desamor e para a agressividade, ser� que ainda h� possibilidade de mudan�a? Ou, de
forma ainda mais pessimista, ser� que esse ponto j� n�o foi ultrapassado e agora
malhamos em ferro frio?

� muito dif�cil responder, pois qualquer resposta s� poderia ser dada nos termos dos
nossos condicionamentos. At� que consigamos reduzir ao menos um pouco essa
limita��o, quaisquer tentativas nesse sentido levar�o a conclus�es equivocadas. De
modo que, nesse caso, somos levados a pensar em termos excludentes: ou nos
resignamos ao que se vem repetindo h� s�culos � que o homem � biologicamente mau e
nada se pode fazer quanto a isso �, ou prosseguimos com nossos esfor�os de reforma
do pensamento.

H� pouco, observei que amar � algo que j� se nasce sabendo, mas que a cultura
dominante nos levou a desaprender. Assinalei tamb�m que essa desaprendizagem n�o
afetou na mesma propor��o os dois sexos. Com efeito, o antrop�logo Ashley Montagu
observa que a mulher cria e conserva a vida, enquanto o homem a mecaniza e destr�i.
Para Montagu, o amor da m�e pelos seus filhos � o grande modelo para todas as demais
formas de relacionamento. J� no fim dos anos 60 ele observava, embora n�o utilizasse
essa express�o, que as mulheres s�o mais preparadas do que os homens para pensar
em termos sist�micos.13

As palavras desse autor mostram como, em geral, as mulheres n�o se deixaram
condicionar tanto quanto os homens pelo pensamento linear. Pode-se dizer que elas s�o
as grandes produtoras e mantenedoras do modelo mental sist�mico, representado pela
intui��o, que com tanto empenho aprendemos a desprezar. Assim, deduz-se que saber
amar � algo que os homens precisam reaprender com as mulheres. Como diz Montagu, o
que precisamos � de um pouco mais do esp�rito feminino e um pouco menos da
agressividade masculina.

O homem pode aprender com a mulher a pensar em termos sist�micos, e, a partir da�,
ambos podem chegar a uma vis�o complexa de mundo. Mas para tanto ele precisa
deixar de impor-lhe a sua linearidade. Isso feito, a complementaridade ocorrer� de modo
espont�neo, porque os processos naturais s�o cooperativos e competitivos e n�o �
como se pensou durante muito tempo � s� competitivos. A "competitividade" � uma
circunst�ncia cultural, criada pelo medo que aprendemos a ter uns dos outros. N�s, do
sexo masculino, precisamos de ajuda para sair dessa situa��o, e esse aux�lio est� bem
mais pr�ximo do que imaginamos.�

� evidente que aqui n�o me refiro ao feminino como sexo. Meu prop�sito � bem mais
abrangente: falo de um amplo conjunto de qualidades e habilidades pr�prias da
totalidade do ser humano que, no momento atual e pelas raz�es j� apontadas, as
mulheres encarnam de forma mais ampla e mais clara. De todo modo � e com Montagu
�, reflitamos sobre o que diz Biron, personagem de Shakespeare:

From women's eyes this doctrine I derive:
They sparkle still the right Promethean fire;
They are the books, the arts, the academes,
That show, contain and nourish all the world:
Else none at all in aught proves excellent.14

[Dos olhos das mulheres tiro esta doutrina:
Elas ainda brilham como o verdadeiro fogo promet�ico;
Elas s�o os livros, as artes, as academias,
Que mostram, cont�m e nutrem o mundo inteiro:
Sem isso, de qualquer forma, nada mais d� provas de excel�ncia.]

Maturana observa que s� o amor expande a intelig�ncia, e parece n�o haver d�vidas a
esse respeito. Nesse sentido, sustento que viver a biologia do amor � viver de modo
inteligente, isto �, de forma competente, o que significa entre outras coisas deixar de
querer reduzir mist�rios a problemas e vice-versa. A intelig�ncia � ao mesmo tempo o
resultado do amor e a vertente que o faz brotar. Quem ama estende a m�o. Quem
estende a m�o prepara-se para o abra�o � e n�o se pode abra�ar a quem n�o se ama.

Saber Abra�ar
Para saber abra�ar, � preciso antes saber amar. Surge ent�o a pergunta: o que ser�
que eu preciso ver no outro para que possa sentir vontade de abra��-lo, isto �, tornar-
me solid�rio com ele? Em primeiro lugar, preciso ver a mim mesmo, e � por isso que devo
evitar projetar nele o que n�o desejo em mim. A maneira como vejo o outro depende
mais de mim do que dele, isto �, como trabalho o meu ego e dos resultados a que
chego. �

Nosso ego funciona como o guardi�o dos condicionamentos de nossa mente. � o meio
pelo qual pomos em pr�tica a raz�o instrumental. Trata-se, como se sabe, de uma
dimens�o institu�da, isto �, elaborada pelas circunst�ncias da cultura. As pessoas que
se empenham em um trabalho sobre si pr�prias, seja pela psicoterapia, seja por outros
processos de desenvolvimento pessoal, podem chegar a uma outra dimens�o eg�ica � o
ego trabalhado � que se aproxima de um modo de viver n�o apenas mec�nico.�

Trata-se de uma dimens�o participante. N�o estou propondo que tenhamos dois egos, �
claro. Ao nos darmos conta desse redimensionamento, por�m, percebemos nossas
possibilidades e limita��es. Defrontamo-nos a um s� tempo com a liberdade e com o
nada.

Martin Heidegger diz que h� duas formas fundamentais de exist�ncia humana. A primeira
se caracteriza pelo esquecimento do Ser. A outra tem essa consci�ncia, e faz com que
vejamos a morte como um fato da vida e n�o apenas como o seu t�rmino. No primeiro
caso, temos a exist�ncia pautada pelo ego-pensamento, que produz o homem
individualista. No segundo, surge o modo de viver do homem que se fez indiv�duo sem se
afastar de seus semelhantes.

A marca central da inautenticidade � a perda do sentido de totalidade. Talvez, seja
essa a no��o que temos maior dificuldade de compreender. Quando um indiv�duo se
mant�m inteiro, adquire a compreens�o de que essa integridade pode e precisa ser
partilhada com o outro, isto �, com o mundo. A ess�ncia do ser humano se define por
meio de sua rela��o com o mundo, e guarda tamb�m uma afinidade indispens�vel com a
totalidade do Ser. Espinosa expressa essa circunst�ncia ao dizer que essa liga��o
configura uma unidade que � a pr�pria natureza. Esse � um dos motivos pelos quais a
id�ia de raz�o desse fil�sofo �, na ess�ncia, �tica. �

Aceitar a morte como um fato da vida equivale a admitir nossa vulnerabilidade e
finitude. O homem individualista, que se pretende imortal, acha que n�o precisa de
ningu�m. O homem-indiv�duo pensa o oposto. Nos termos do mito do curador ferido, sua
posi��o corresponde a admitir a possibilidade de estar lesado e, em conseq��ncia,
respeitar as feridas dos outros e dispor-se a ajudar a cuidar delas.

Sem essa consci�ncia n�o poderemos instaurar uma nova �tica da alteridade.
Acompanhando Montaigne, Goethe assim expressa a nossa situa��o: "Os homens trazem
dentro de si n�o s� a sua individualidade, mas a humanidade inteira, com todas as suas
possibilidades". Se persistirmos na recusa de assumir na pr�tica essa condi��o,
continuar� a ser para n�s muito f�cil agredir e eliminar o outro � e, convenhamos, n�o
pode haver vontade de abra�ar aquele a quem vemos como um condenado.

A id�ia da morte valoriza a nossa exist�ncia, e faz com que valorizemos a vida do outro.
Nas palavras do psicoterapeuta Irvin Yalom, se a morte destr�i o homem, a id�ia dela o
salva. Aceitamos a morte como um fato da vida � e n�o apenas como o fim de tudo �
quando nos damos conta de que somos vulner�veis e fr�geis e de que o mundo (que
inclui a figura do outro) tamb�m o �.

Eis o que chamo de interfragilidade. Para chegar a ela, � preciso percorrer tr�s planos:
a) primeiro, a fase de preval�ncia do ego, com sua m�o fechada, pronta para o soco, ou
ent�o crispada sobre a empunhadura da espada; b) a seguir surge a etapa da m�o
aberta e estendida, que resulta do trabalho sobre a dimens�o eg�ica; c) por fim, vem a
m�o estendida, que se continua por um bra�o, que por sua vez se alia a outro e ambos
se disp�em a abra�ar.

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