Os Cinco Saberes do Pensamento Complexo
[Pontos de encontro entre as obras de Edgar Morin,
Fernando Pessoa e outros escritores]
Humberto Mariotti
p�g. 4/4
Os bra�os pertencem a um corpo. No estado atual de nossa cultura, este � comandado
pelas determina��es do ego n�o trabalhado, que precisa dele para utiliz�-lo como arma
ou ferramenta, dado que � assim que exerce a competi��o e a agressividade. O ego
"possui" o corpo, e essa rela��o dividida transforma a vida das pessoas em uma
sucess�o de apegos, disputas e conflitos.

J� a experi�ncia do ego trabalhado muda esse horizonte, porque torna-se claro que n�o
possu�mos o nosso corpo: n�s o somos. Entendida dessa forma, a corporeidade passa a
ser vivida como uma intercorporeidade � e, assim, nos damos conta de que o corpo �
o lugar onde se fundem o morador e a morada, a teoria e a pr�tica, o abstrato e o
concreto, o ser e o nada.

Da intercorporeidade emerge a espiritualidade. Esta, como escrevi antes, corresponde a
uma atitude de respeito pelo mundo natural e participa��o em seus processos. Tudo
isso come�a, � claro, pela rela��o com o outro. N�o estou dizendo que n�o se deva
buscar por outros meios a transcend�ncia, mesmo porque esta � uma dimens�o
necess�ria e fundamental para o ser humano. O ponto no qual insisto � que nenhuma
iniciativa de religa��o pode ser tomada sem que primeiro se chegue ao ponto mais
importante de todo o processo, que � a legitima��o da figura do outro.�

Se a busca do outro � a procura da integra��o no mundo, dizer que o amor � uma
dimens�o biol�gica s� na apar�ncia � uma redu��o. Uma reflex�o mais aprofundada
revela que apenas por meio do outro � poss�vel ampliar e transcender as limita��es de
nossa fragmenta��o e solid�o existencial.

A busca da alteridade � inerente � condi��o humana. J� sabemos que a localiza��o
anat�mica de nossos olhos revela que eles est�o orientados para enxergar o outro.
Tamb�m n�o podemos abra�ar a n�s mesmos: s� o outro pode abra�ar-nos. Eis por que
precisamos dele: para que nos abrace e, assim, nos ajude a saber que existimos.

Somos seres desejantes. Mas, como intuiu o psicanalista W. Fairbairn, a finalidade do
desejo n�o � o prazer, e sim a rela��o com o outro. O prazer � um meio para esse fim.
N�o buscamos a conviv�ncia por causa do prazer � � ele que nos leva a procur�-la. O
si-mesmo n�o � apenas �nico, � tamb�m coletivo. Nesse sentido, o indiv�duo n�o tem
primazia sobre a cultura em que vive. Quanto mais nos identificarmos apenas com o
ego, mais dificuldade teremos de entender que o si-mesmo � a um s� tempo individual e
comunit�rio.

J� em 1953, o escritor argentino Ernesto S�bato15, certamente influenciado por Martin
Buber, via no processo hist�rico um impulso em dire��o ao feminino, ao qual chamou de
gamocentrismo. Esse abra�o dos sexos pode ser visto como uma met�fora para exprimir
a complementaridade dos pensamentos linear e sist�mico, que comp�e o pensamento
complexo, o qual, por sua vez, permite o entendimento e a pr�tica da vis�o de mundo
neomatr�stica. Para S�bato, as sociedades humanas se movem, desde a Idade M�dia,
segundo a seguinte din�mica:

- Comunidade medieval (predom�nio do N�s);
- individualismo mercantil do Renascimento (predom�nio do Eu);
-�ci�ncia e capitalismo abstratos da modernidade (predom�nio do Isso);
- rebeli�o rom�ntica, existencial, concreta e feminina (predom�nio do Eu);
- s�ntese fenomenol�gica, rumo a uma comunidade feminino-masculina�
(predom�nio do N�s).

Neste ponto, � necess�rio fazer uma digress�o. Sabemos que o in�cio da experi�ncia
mental � inconsciente e se estrutura com o feto no �tero materno, imerso em seu
pequeno mar de l�quido amni�tico. Nesse ambiente, ele est� em paz, satisfeito e em
"uni�o oce�nica" com a m�e, como escreveu Freud. Ao determinar a expuls�o brusca
da crian�a dessa "oceanidade", o nascimento representaria um trauma terr�vel. � dessa
separa��o que se originaram mitos conhecidos, como o da queda e o que fala de uma
idade de ouro h� muito perdida.

Nessa ordem de id�ias, a partir do nascimento, o ser humano se v� diante de dois
caminhos: ou supera o trauma primal e torna-se um indiv�duo no mundo, ou o nega e
sua vida passa a ser uma longa jornada de volta � unidade perdida. No segundo caso,
tem-se o que ocorre com certos m�sticos, para os quais a busca de uma fus�o com o
Universo significa a nega��o da exist�ncia individual � julgada insignificante � e uma
idealiza��o da religa��o com o todo.

Essa posi��o tem sido interpretada por muitos como alienante. Em termos psicol�gicos,
corresponde a uma ren�ncia radical ao ego, que por sua vez tem sido vista como uma
alternativa a ter que enfrentar o terror de sentir-se abandonado num mundo estranho e
hostil. Para outros, ela tamb�m representaria uma necessidade de onipot�ncia, cujo
resultado mais imediato seria um certo desprezo por tudo o que � material. �

O desejo narc�sico de dilui��o na totalidade pode tamb�m ser interpretado como a raiz
de nossa tend�ncia de achar que pouco ou nada podemos fazer por n�s pr�prios, o que
nos levaria a buscar apoio em �mbitos abstratos e idealizados. Como resultado, nossos
semelhantes passariam a ser encarados como fracos e desprez�veis ou, na melhor das
hip�teses, como companheiros de infort�nio. Tender�amos a transferir o nosso centro
de auto-regula��o para um dom�nio externo, o que acabaria nos alienando cada vez
mais da realidade.

� muito importante n�o confundir a necessidade de ser visto (reconhecido) e abra�ado
(acolhido) pelo outro com o desejo de retornar a essa "oceanidade". Abra�ar e ser
abra�ado derivam da primeira escolha atr�s mencionada, isto �, da op��o de tornar-se
um indiv�duo neste mundo. Sustento que ver e ser visto, tocar e ser tocado, abra�ar e
ser abra�ado (pelo outro e pelo mundo) s�o met�foras de integra��o, n�o de dilui��o
ou apagamento.�

A religa��o de que fala o pensamento complexo � uma reaproxima��o de saberes, a ser
posta em pr�tica na concretude dos sistemas da natureza. N�o se trata de uma
vontade de retorno, mas sim de uma efetiva participa��o na din�mica dos ciclos do
mundo natural. � uma interdepend�ncia espont�nea, que produz autoprodu��o e
autonomia, e n�o uma co-depend�ncia induzida pelo medo, que resulta em
aprisionamento.�

Foi dito e repetido que a nega��o radical do ego, ou sua transforma��o em vil�o, traz
consigo o perigo de aliena��o e, em conseq��ncia, a nega��o do outro. A suposi��o,
por exemplo, de que a ancestral cultura matr�stica seria um reino encantado, um
grande �tero materno ao qual todos devemos retornar, � um equ�voco que, em �ltima
an�lise, traduz o desejo de submiss�o a um matriarcado ideal, que nada tem a ver com
o modo matr�stico de conviv�ncia. �

Por isso, � necess�rio que n�o confundamos as atuais propostas de sociedades de
parceria com fantasias de regress�o a uma idade de ouro perdida. Essas iniciativas
incorporam v�rias das caracter�sticas da cultura matr�stica, mas a consci�ncia que as
orienta est� baseada em uma vis�o de futuro realista, e nada receosa ou submissa.�

Do mesmo modo, o pensamento complexo est� muito longe dessa id�ia de fus�o
"oce�nica". Sua proposta inclui a procura do autoconhecimento, que resulta da
compreens�o de que o ego � fr�gil e por isso precisa ser trabalhado e reestruturado,
para que possa ser capaz de cumprir o seu papel. Um ego fr�gil, alienado ou negado em
nada ajudar� na reforma do sistema de pensamento. �

O eu cont�m o m�ltiplo (a sociedade, a cultura) que, por sua vez, o cont�m. Eis a
unitas multiplex � a unidade na multiplicidade, a tradu��o do abra�o comunit�rio que
envolve a cada um de n�s. Tudo isso se expressa de um modo din�mico: o eu se
transforma com a cultura, que por sua vez o modifica, numa rela��o de congru�ncia. O
abra�o n�o � um substantivo, e sim um verbo � um verbo no ger�ndio: melhor seria
que estiv�ssemos sempre abra�ando e nos deixando abra�ar.

A insist�ncia em negar essa necessidade gera a intermin�vel seq��ncia das nossas
afli��es. Fingimos n�o saber que quanto mais "competitividade", mais esperteza e
menos intelig�ncia. A esperteza fragmenta, mutila, n�o respeita a unidade das coisas
naturais. A intelig�ncia aproxima, abra�a. N�o pode ser medida, porque sua �nica
dimens�o � a totalidade.

N�o � que a intelig�ncia seja melhor do que a esperteza, nem vice versa. Vejo as duas
do ponto de vista operacional � e afirmo que elas n�o precisam complementar-se,
porque a primeira j� inclui a segunda, isto �, o homem inteligente � aquele que sabe
que, no fluxo das coisas, � preciso ser inteligente sem deixar de ser esperto. Sabe que
� necess�rio temperar a habilidade de resolver problemas mec�nico-fisiol�gicos com os
limites �ticos que a intelig�ncia aponta para as conseq��ncias das a��es que os
geraram. �

A "competitividade" � uma dimens�o da esperteza. A compet�ncia est� no �mbito da
intelig�ncia. Dizer que precisamos trabalhar por mais intelig�ncia e menos esperteza
equivale a propor que � necess�rio buscar mais individualidade e menos individualismo.
A individualidade � o ponto de partida natural para a interpessoalidade. O individualismo
� o marco inicial da competi��o predat�ria. O homem que se individualiza � aquele que
se diferencia da massa, mas n�o imagina que pode se isolar de seus semelhantes. � o
que se torna indiv�duo sem se deixar alienar.

N�o h�, pois, individualidade sem interpessoalidade. Ser indiv�duo � buscar a
intelig�ncia (que nasce da interpessoalidade) e saber lidar com a esperteza (que se
origina no individualismo). N�o nos esque�amos de que o homem que se torna um
indiv�duo � uma s�ntese viva e criadora da condi��o humana, enquanto aquele que
mergulha no individualismo imagina-se sempre primeiro e �nico � o que, como j� foi dito,
equivale a correr o risco de ser tamb�m o �ltimo. �

Esperteza ("competitividade") � querer vencer eliminando os vencidos. Intelig�ncia
(compet�ncia) � poder venc�-los e estender-lhes a m�o, para que eles possam amanh�
ser tamb�m vencedores. A m�o fechada � o come�o da separa��o. A m�o estendida �
o in�cio do abra�o. � o ponto de partida para o pensamento complexo � marco
inaugural do longo processo de busca da solidariedade.

Notas
1. SENGE, Peter, et al. The Fifth Discipline Fieldbook. Nova York: Doubleday Currency, 1994, p.p. 3-4.
2. PESSOA, Fernando. Obra Po�tica. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1974, p. 212.
3. Id., ibid., p. 217.
4. MARIOTTI, Humberto. As Paix�es do Ego: Complexidade, Pol�tica e Solidariedade. S�o Paulo: Palas
Athena, 2000, pp. 245-246.
5.PESSOA, Fernando. Obra Po�tica. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1974, p.207.
6.Id., ibid., p. 207.
7.Id. ibid., p. 222.
8.Id., ibid., p. 234.
9.Id., ibid., p. 238.
10.�� ROUSSEAU, Jean-Jacques. Em�lio ou da Educa��o. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1992, p�g. 9,
nota 1.
11.�� MONTAGU, Ashley A Superioridade Natural da Mulher. Rio de Janeiro: Civiliza��o Brasileira,
1970, p. 3.
12.�� Ver TODOROV, Tzvetan. A Vida em Comum: Ensaio de Antropologia Geral. Campinas (S.
Paulo): Papirus, 1996, pp. 24-25.
13.�� MONTAGU, op. cit., p. 138.
14.�� SHAKESPEARE, William. The Complete Works of William Shakespeare. (William G. Clark, William
A. Wright, eds.) Nova York: Grosset & Dunlap, 1911, Love's Labour's Lost, p. 182.
15.�� S�BATO, Ernesto. Heterodoxia. Campinas (S. Paulo): Papirus, 1993, p.91.

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( � Mariotti, H., 2002 )�

Observa��o. Este texto corresponde a uma palestra dada pelo autor nas 3as. Confer�ncias
Internacionais de Epistemologia e Filosofia. Instituto Piaget, Campus Acad�mico de Viseu, Portugal,
em abril de 2002. �

HUMBERTO MARIOTTI. M�dico e psicoterapeuta. Pesquisador nas �reas de Complexidade e Ci�ncia
Cognitiva. Coordenador do Grupo de Estudos Contempor�neos � Complexidade, Pensamento
Sist�mico e Cultura � da Associa��o Palas Athena (S. Paulo, Brasil).�

Email- homariot@uol.com.br

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