Os Diferentes Momentos de uma
Campanha de A��o N�o-violenta
Jean-Marie Muller
p�g. 1/3
Gostar�amos de tentar identificar os diferentes momentos e etapas da estrat�gia de a��o
n�o-violenta, desde as a��es pontuais, dirigidas contra uma determinada injusti�a que
caracterize a desordem estabelecida, at� a tomada efetiva do poder pol�tico pelo povo e a
instaura��o de uma nova ordem social que seria regida, na medida do poss�vel, segundo os
princ�pios e as exig�ncias da n�o-viol�ncia. Temos consci�ncia de que se trata de uma
tarefa arriscada e sentimo-nos fortemente inclinados a elaborar, de forma abstrata, o que
deveria ser a revolu��o n�o-violenta. No entanto, seria completamente ilus�rio distribuir
receitas a serem aplicadas em cada situa��o, pretendendo-se assim colher bons
resultados.

Por�m, se � in�til perscrutar o futuro, pode ser de grande valia analisar o passado para
melhor agir no presente. Portanto, n�o nos parece infrut�fero reunir os ensinamentos
extra�dos das experi�ncias de luta n�o-violenta ocorridas no passado, apresentando-os de
acordo com a ordem que corresponda � cronologia dos fatos. N�o se trata de esterilizar a
imagina��o, mas de mostrar um cen�rio no qual a experi�ncia nos ensinou que havia
amplas possibilidades de exercit�-la de forma mais eficaz.

Se essas indica��es n�o nos garantem �xito, pelo menos deveriam impedir que
incorr�ssemos em in�meros erros que inevitavelmente nos levam ao fracasso. Ser�
necess�rio, quando chegar a ocasi�o, adaptar-se ao terreno, diante de circunst�ncias
amplamente imprevis�veis, e imaginar os meios mais adequados a mobilizar.

Charles de Gaulle afirma, em sua obra O fio da espada: "Aqueles que lutam se encontram
perpetuamente diante de uma situa��o nova e, pelo menos em parte, imprevista",
destacando, deste modo, a dificuldade de a intelig�ncia conceber a a��o que deveria ser
colocada em pr�tica frente ao advers�rio. O instinto dever� aliar-se � intelig�ncia para
que a a��o seja corretamente adaptada �s circunst�ncias do evento. No entanto, o
esfor�o te�rico n�o � in�til. Pois "se a intelig�ncia � insuficiente para a a��o, � natural
que aquela seja parte integrante desta e, quando da elabora��o antecipada dos dados de
concep��o, torna-os mais intelig�veis, mais expl�citos, e reduz a margem de erro".


I. An�lise da situa��o

A din�mica de uma a��o nasce na tomada de consci�ncia de uma injusti�a, e esta (que
n�o � necessariamente nova), com todo seu rigor, mostra-se literalmente "insuport�vel" e,
por conseguinte, temos o sentimento de que n�o podemos suport�-la por muito mais
tempo: "isso n�o pode mais continuar!". Decidimos, portanto, p�r termo a ela e
come�amos a agir.

� essencial, contudo, que a decis�o por uma determinada a��o seja tomada a partir de um
conhecimento exato da situa��o na qual se inscreve a injusti�a que queremos denunciar e
combater. Caso sejamos pegos em falhas no que diz respeito ao conhecimento dos fatos,
isso viria a desacreditar seriamente nossa iniciativa, reduzindo as possibilidades de �xito.

Num primeiro momento, sentimos o impulso de aumentar os fatos e exagerar-lhes a
gravidade ao expor a situa��o, chegando at� a caricaturar a posi��o de nossos
advers�rios. No entanto, � ilus�rio pensar que essa estrat�gia possa ter alguma efic�cia.
Ao contr�rio, ser� mais f�cil para aqueles que acusamos enfatizar, apoiados em
argumentos convincentes, o aspecto exagerado das acusa��es formuladas contra eles e,
com isso, conseguir se justificar inteiramente. Em contrapartida, o conhecimento rigoroso
dos fatos e sua apresenta��o mais racional e objetiva poss�vel constituem um trunfo maior
em nosso favor, refor�ando nossa posi��o. A possibilidade de, em qualquer ocasi�o,
justificar as afirma��es, baseando-se em provas, � um elemento de primeira import�ncia
na rela��o de for�as que se estabelecer� entre os advers�rios.

� necess�rio, assim, constituir um dossi� sobre os fatos que seja o mais completo
poss�vel. N�o � necess�rio ater-se � constata��o dos fatos. � imprescind�vel, no entanto,
compreend�-los para saber por que e como a injusti�a surgiu e se perpetuou. � preciso
conhecer as for�as sociais, pol�ticas e econ�micas implicadas na situa��o, as atitudes
pr�ticas das partes em confronto e suas justificativas te�ricas. � importante analisar
tamb�m as estruturas de poder que caracterizam a situa��o, a fim de identificar onde
est�o situados os centros de decis�o. Al�m disso, � prudente conhecer as leis
concernentes aos lit�gios entre as partes confrontadas, para distinguir claramente os
direitos outorgados ou n�o pela mesma. Esta an�lise deve nos permitir identificar com
exatid�o nossos aliados e nossos advers�rios no conflito.


II. Escolha do objetivo

Tamb�m a partir da an�lise da situa��o � que devemos escolher o objetivo a ser
alcan�ado. A escolha do objetivo � um elemento essencial de uma campanha de a��o;
exclusivamente dele depende o �xito ou o fracasso.

� uma necessidade estrat�gica que o objetivo seja claro, preciso, limitado e poss�vel.
Para isso, � adequado discernir o que seria desej�vel e o que poss�vel. Seria condenar-
se ao fracasso escolher um objetivo cuja import�ncia seja desproporcional em rela��o �s
for�as que pretendemos razoavelmente mobilizar para conduzir � a��o. Portanto, �
primordial que o objetivo esteja ao alcance do movimento social suscitado pela a��o, para
que o objetivo escolhido possibilite a vit�ria.

A campanha de a��o n�o deve estar circunscrita a uma simples campanha de protesto e
de sensibiliza��o. � preciso obter ganho de causa. � preciso vencer. Essa vit�ria,
necessariamente parcial e limitada, dar� confian�a aos militantes e facilitar� a busca de
objetivos mais ambiciosos.

Embora seja conveniente situar-se em uma perspectiva que englobe o conjunto do sistema
pol�tico que predomina na sociedade, � uma necessidade estrat�gica escolher um ponto
preciso do sistema que possa exercer influ�ncia sobre o mesmo, capaz de moviment�-
lo e oscil�-lo, atuando como uma alavanca. Esse ponto espec�fico seria o ponto de apoio.
� preciso dedicar-se ao m�ximo para garantir que o ponto de apoio seja bom. N�o se deve
solt�-lo nem deix�-lo que se distancie de n�s.


III. Escolha da organiza��o

A a��o n�o-violenta compreende contar com a responsabilidade individual de cada
um
. Mas, para tornar-se eficaz, deve ser coletiva e organizada. A pr�pria organiza��o
deve ser n�o-violenta, isto �, possibilitar que todos tenham uma participa��o efetiva nas
responsabilidades e decis�es. Al�m disso, n�o deve minar a espontaneidade. Ao contr�rio,
deve t�-la como apoio e canaliz�-la de forma que n�o se transforme em fator de dispers�o
e de incoer�ncia, mas uma mola propulsora que oriente a a��o e lhe empreste sua for�a.

Uma das fun��es da organiza��o � dividir as tarefas e coordenar as atividades daqueles
que aceitaram assumi-las. A urg�ncia e a import�ncia das decis�es que ir�o
indubitavelmente surgir no decurso da a��o n�o permitir�o que a responsabilidade principal
esteja completamente dilu�da na coletividade, composta por todos que participam na a��o.

A organiza��o dever� ser constitu�da de um �rg�o de decis�o, tendo bem claro que n�o �
a autoridade o que deve estabelecer os v�nculos entre os respons�veis de um movimento
n�o-violento e seus militantes, mas sim a confian�a, visto que � da natureza humana e
das coisas que alguns assumam maiores responsabilidades que outros. Como em qualquer
a��o coletiva, surgem l�deres, ou um l�der, e poder�o ocorrer alguns problemas, rivalidades
e, �s vezes, conflitos entre as pessoas. � fundamental que o papel representado pelo l�der
n�o adquira uma relev�ncia desmedida na organiza��o da a��o. Deve-se evitar ao m�ximo
que a unidade, a coes�o e a for�a do movimento estejam apoiadas apenas na
personalidade do l�der. Diante dessa perspectiva, a parte emocional que une o l�der aos
demais militantes deve ser a m�nima poss�vel e a parte racional a mais ampla. O melhor
meio para que o l�der n�o se exceda � refor�ar a democracia dentro da organiza��o.

Geralmente, a a��o ser� assumida por uma organiza��o j� existente (sindicato, partido,
movimento, associa��o...) ou por uma forma��o conjunta de organiza��es. Assim, a a��o
poder� se beneficiar imediatamente de todo o potencial militante desta(s) organiza��o
(�es). No entanto, �s vezes, uma organiza��o espec�fica deve ser criada para dar in�cio e
conduzir a a��o.

Uma das tarefas que a organiza��o deve tomar sob sua responsabilidade � a forma��o e a
capacita��o dos militantes para a a��o n�o-violenta. Para que a a��o possa ser bem
conduzida, a iniciativa deve ser assumida e mantida por pessoas determinadas a ater-se
aos m�todos n�o-violentos. Isso � indispens�vel para que o movimento n�o naufrague t�o
logo surjam as dificuldades, os tumultos, o medo e, finalmente, a viol�ncia.

Al�m disso, o movimento poder� se fortalecer apenas � medida que puder beneficiar-se de
redes locais distribu�das pelo pa�s que possam transmitir � popula��o as informa��es e as
instru��es de a��o.


IV. Primeiras negocia��es

Conv�m, o mais r�pido poss�vel, entrar em contato direto com o advers�rio, antes mesmo
de tornar p�blica a discord�ncia, a fim de propor-lhe uma solu��o negociada do conflito
em vez de partir para o confronto sistematicamente. Trata-se assim de expor aos
representantes da parte contr�ria as conclus�es que nos conduziram � an�lise da situa��o
e de enfatizar nossas reivindica��es, identificando com clareza o objetivo escolhido.

� poss�vel que, na primeira tentativa, o advers�rio recuse qualquer negocia��o. Caso
aceite um encontro, raramente se chega a um acordo imediatamente. Essas primeiras
negocia��es permitir�o, no entanto, avaliar as inten��es de nossos interlocutores. Se �
imprescind�vel evitar qualquer atitude que possa enrijecer inutilmente o conflito e refor�ar
as barreiras existentes, o que tornaria qualquer solu��o ainda mais dif�cil, � fundamental
demonstrar tamb�m grande firmeza e determina��o.

Em hip�tese alguma devemos ficar satisfeitos com promessas. Devemos exigir decis�es.
Quando as negocia��es se encontram num impasse, devem ser suspensas e n�o rompidas
definitivamente, uma vez que a finalidade da a��o direta � a retomada das negocia��es. �
medida do poss�vel, poder� ser frut�fero manter alguns contatos com o advers�rio durante
todo o tempo em que durar o conflito.

De acordo com um princ�pio fundamental de qualquer estrat�gia, o tempo dessas primeiras
negocia��es deve ser tamb�m o tempo de prepara��o da resist�ncia.


V. Apelo � opini�o p�blica

Diante do insucesso das primeiras negocia��es � preciso empenhar-se para deixar a
injusti�a vir � tona publicamente por todos os meios de comunica��o, informa��o,
sensibiliza��o, conscientiza��o e populariza��o pass�veis de provocar mobiliza��o,
buscando o m�ximo de "publicidade", no sentido t�cnico desta palavra, isto �, um maior
alcance junto ao p�blico, para que conhe�a os motivos da a��o e os objetivos atrelados �
mesma.

1.Meios de informa��o
Objetiva criar um "fato jornal�stico" que divulgue a informa��o ao p�blico. De in�cio, �
preciso informar diretamente os jornalistas de diferentes ve�culos de m�dia, enviando-lhes
um dossi�, o mais exaustivo poss�vel, sobre o conflito em curso.

Uma coletiva de imprensa poder� tamb�m ser organizada, mas, num primeiro momento, os
contatos pessoais com os jornalistas poder�o se revelar mais apropriados. Tamb�m, ser�
preciso passar informa��es aos partidos, sindicatos, movimentos, organiza��es e
personalidades que possam oferecer apoio, e talvez aux�lio � campanha de a��o em foco.

No entanto, ser� preciso passar imediatamente uma informa��o direta ao p�blico, usando
diferentes m�todos, tais como: distribuir folhetos em locais e hor�rios mais adequados,
circular abaixo-assinados, "fazer os muros falarem" colando cartazes e grafitando
mensagens (nesse caso, zela-se para n�o sujar os muros e edif�cios, mas, ao contr�rio,
encobrir a sujeira...), "congestionar" as cal�adas etc. Para intensificar a divulga��o do
movimento, ser� fundamental ampliar o n�mero de reuni�es de informa��o, se poss�vel de
bairro a bairro, de cidade em cidade.

Informar significa estar com a palavra, e isso j� significa ter o poder. � imprescind�vel que
essa fala seja e continue n�o-violenta no transcorrer de toda a a��o. Acreditar-se mais
convincente ao proferir uma fala violenta contra o advers�rio � sempre uma ilus�o,
incorrendo-se em grande risco de convert�-la em caricaturas, insultos, exageros e inj�rias.
E isso somente desacredita a a��o.

O alcance de uma palavra prov�m de sua exatid�o e n�o de sua viol�ncia. A for�a
pedag�gica de uma fala n�o-violenta � muito maior que a de um grito. Al�m disso, �
important�ssimo recorrer ao humor, por seu inigual�vel poder de convencimento. A
receptividade da opini�o p�blica diante do humor � extremamente grande. Por outro lado,
o humor � uma das melhores prote��es contra o �dio e a viol�ncia. Se fiz�ssemos muito
mais humor, haveria menos guerras... E, al�m disso, o humor nos permitir� ocupar posi��o
de for�a no confronto com nossos advers�rios, visto que e, sobretudo, se estiverem junto
ao poder, ser�o, de forma geral, incapazes de humor.

2.Interven��es diretas
Trata-se de manter, continuamente, contato direto com o p�blico, para passar informa��o
e conscientizar, expressando-se n�o apenas por meio da fala, mas com todo seu corpo.
No decorrer destas interven��es p�blicas, a atitude corporal dos manifestantes � um
recurso essencial de express�o e de comunica��o. As primeiras manifesta��es p�blicas
devem ser, prioritariamente, meios de persuas�o em que prevale�a a legitimidade da causa
defendida, mas que j� constituam meios de press�o e preparam a mobiliza��o dos meios
de coer��o. Destacamos, a seguir, alguns m�todos de interven��o p�blica.

- Passeata: ou o que comumente chamamos manifesta��o. Trata-se de reunir, de formar
um cortejo e percorrer a cidade a p�, indo de um local simb�lico para outro. O chamado �
manifesta��o n�o se dirige apenas aos militantes, mas tamb�m aos simpatizantes. �
poss�vel ainda tomar a palavra em pra�a p�blica. A manifesta��o, mesmo a silenciosa,
deve ser "falante" para os espectadores, expressando-se por meio de faixas e cartazes
enquanto se distribuem folhetos aos transeuntes. Pode-se recorrer tamb�m a slogans e
m�sicas para expressar-se junto ao p�blico.

- Marcha: os manifestantes percorrem longas dist�ncias � de cidade em cidade do pa�s ou
atravessando v�rios pa�ses � com o objetivo de sensibilizar a popula��o das regi�es
percorridas no que tange � injusti�a que se quer denunciar. Aqui, tamb�m, a marcha deve
ser "falante", por meio de cartazes, folhetos, placas e faixas. Em cada cidade-etapa
podem ser organizadas reuni�es p�blicas, visando informar os habitantes e fomentar um
debate p�blico sobre o problema em quest�o. Uma delega��o pode solicitar ser recebida
pelas autoridades locais, com a finalidade de evidenciar o ponto de vista dos
manifestantes. O pleno �xito de tal iniciativa implica que comit�s de apoio possam preparar
o itiner�rio dos andarilhos e acolh�-los quando de sua passagem.

Tal manifesta��o pode ser realizada tamb�m empregando qualquer meio de transporte: da
bicicleta a trator, passando pela mobilete...

Outras a��es de sensibiliza��o que mobilizem apenas um pequeno n�mero de militantes,
dentre os mais determinados, podem tamb�m ser consideradas como, por exemplo:

. Teatro-perform�tico: representa-se nas ruas uma cena de teatro de alguns minutos,
que possa transmitir uma mensagem t�o condensada, t�o simples e clara quanto aquela
exposta em um folheto bem formulado.
. Sit-in: manifesta��o em que todos permanecem sentados em um local simb�lico.
. Manifesta��o silenciosa de mulheres e homens-sandu�che: manifestantes,
dispostos de acordo com um esquema espec�fico, trajando vestu�rio que os identifique
(por exemplo, camiseta, avental simples de duas faces e sem mangas sobrepostos �s
roupas), com inscri��es de mensagens ou slogans, desfilam pelas ruas nos hor�rios de
maior aflu�ncia. Nesta ocasi�o, podem ser distribu�dos folhetos.
. Per�odos de sil�ncio: V�rias pessoas se re�nem em um local simb�lico, andando e
permanecendo em p� e em sil�ncio, transmitindo a mensagem apenas por meio de cartazes
e faixas, enquanto outros manifestantes distribuem folhetos e conversam com as pessoas
que interpelam os manifestantes.
. Corrente humana: alguns militantes, trajando alguma vestimenta que os identifique,
permanecem acorrentados �s grades de um edif�cio p�blico. Geralmente, s�o soltos pelas
for�as da ordem. Uma foto empresta e publicada pela imprensa, na maioria dos casos,
confere maior impacto a esta forma de manifesta��o.
. Greve de fome por per�odo determinado: abst�m-se de qualquer alimento
(imprescind�vel, por�m, beber �gua) durante alguns dias, digamos entre 3 e 20 dias, a fim
de atrair a aten��o tanto dos respons�veis pela injusti�a, como da opini�o p�blica. � uma
a��o de protesto e de conscientiza��o; no entanto, por estar circunscrita a um per�odo,
n�o visa suprimir a injusti�a. A personalidade da(s) pessoa(s) que faz(em) greve de fome
exerce um papel preponderante no impacto junto � opini�o p�blica.

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