Antropologia da Liberdade
Edgar Morin
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Liberdade � possibilidade de escolha. A possibilidade de escolher pode ser interior, isto
�, subjetiva ou mentalmente poss�vel: liberdade de mente. Pode tamb�m ser exterior,
ou seja, objetiva ou materialmente poss�vel: liberdade de a��o.

Quando mais numerosos forem os dom�nios que oferecem possibilidades de escolha e,
em cada dom�nio, quanto� mais variadas e numerosas forem as escolhas, mais haver�
possibilidades de liberdade. Quando maior a import�ncia para a exist�ncia for o tipo de
escolha, mais alto ser� o n�vel de liberdade, isto �, escolha de meio de transporte,
profiss�o, resid�ncia, vida.

Em princ�pio, parece evidente que em condi��es favor�veis um ser humano disp�e de
possibilidades de liberdade.�Experimentamos subjetivamente nossa liberdade todas as
vezes que nos � dado escolher entre alternativas e decidir.

Por outro lado, toda considera��o objetiva sobre nossa condi��o parece reduzir a
liberdade a uma ilus�o subjetiva. Sofremos as restri��es do meio ao qual devemos nos
adaptar; estamos sujeitados por nosso patrim�nio gen�tico, que gerou e conserva
nossa� anatomia, fisiologia, nosso c�rebro e, portanto, a possibilidade de intelig�ncia e
consci�ncia; estamos sujeitados pela cultura, que inscreve em nossa mente, desde o
nascimento, normas, tabus, mitos, id�ias, cren�as; estamos submetidos � sociedade,
que nos imp�e leis e proibi��es; somos at� mesmo possu�dos por nossas id�ias, que
tomam posse de n�s quando achamos que as temos � nossa disposi��o.�

Dessa maneira, somos ecologicamente dependentes e, do mesmo modo, sujeitados
social, cultural e intelectualmente. Como s�o poss�veis liberdades, se estamos
submetidos por todos os lados?

O Imp�rio do Ambiente
Como dissemos v�rias vezes antes1 , � preciso substituir o conceito de meio exterior
que imp�e fatalidades aos seres vivos pela id�ia de autonomia dependente. Uma
organiza��o assim certamente est� sujeita a determinantes f�sico-qu�micas, mas elas
s�o integradas, superadas e utilizadas pela auto-organiza��o viva.
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Tamb�m j� explicamos, em outro lugar, que a autonomia viva depende do meio exterior,
do qual retira energia e organiza��o. Assim, toda autonomia viva � dependente.
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Aquilo que produz a autonomia produz a depend�ncia, que por� sua vez produz a
autonomia.

A exist�ncia em sociedade deu ao ser humano um grau consider�vel de autonomia. Os
desenvolvimentos t�cnicos da agricultura, transporte e ind�stria foram conquistas de
autonomia, pois controlaram energias materiais e exploraram produ��es naturais. O que�
conduziu a uma domina��o efetiva da natureza, evidentemente, criou uma multiplica��o
de depend�ncias, al�m de uma depend�ncia global da biosfera da qual fazemos parte.

Ao desenvolver sua autonomia e domesticar a natureza, a sociedade hist�rica
desenvolveu e imp�s restri��es aos indiv�duos (com freq��ncia sujeitando a maioria). O
que nos leva a perguntar: a autonomia que os indiv�duos adquiriram em rela��o �
natureza estaria perdida para a cultura e a sociedade?

O Dom�nio dos Genes
Antes de chegar a essa indaga��o, � preciso que examinemos se a autonomia viva, no
que se refere ao mundo exterior, n�o comporta uma depend�ncia interior � qual n�o �
poss�vel escapar.

No que diz respeito a si mesma, a depend�ncia de uma organiza��o aut�noma � a
condi��o evidente de toda a sua� autonomia. Entretanto, o problema se aprofunda
quando se considera que a auto-organiza��o � inclusive a humana � � geneticamente
dependente. Trata-se de uma depend�ncia de origem anterior, pois � heredit�ria. Como
os geneticistas explicam o papel dos genes com a palavra programa, pode-se dizer que
a autonomia viva � inclusive a humana � � programada como a de um aut�mato.

Dessa maneira, Genos (a organiza��o gen�tica) d� ao Anthropos autonomia em rela��o
a Oikos (o meio ambiente natural), mas a mesmo tempo o p�e sob sua depend�ncia. De
acordo com essa concep��o, � o gene � unidade ao mesmo tempo qu�mica e
informacional � que det�m a verdadeira soberania sobre os nossos seres.

J� falamos sobre as formas fetichistas, racionalizadoras (delirantes) do pan-
geneticismo, que substituiu o imp�rio do ambiente pelo imp�rio dos genes.
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Recordemos de modo breve� os argumentos que contestam essa vis�o imperialista.

Se � correto que a autonomia do indiv�duo no mundo exterior � o resultado de uma
autonomia gen�tica, esta por sua vez depende da autonomia individual por ela
produzida. Como j� vimos
5, no indiv�duo�a organiza��o associa, de maneira indissoci�vel
e complementar, o Genos (a esp�cie, o patrim�nio heredit�rio, o processo reprodutivo)
e o Phenon (o indiv�duo vivo hic et nunc no mundo dos fen�menos). A rela��o entre
eles � circular, recursiva. Isto �, trata-se de um circuito gerador/regenerador, no qual a
produ��o produz um produto que a produz e a reproduz. Cada termo � ao mesmo tempo
produto e produtor do outro.�

A esp�cie produz o indiv�duo que produz a esp�cie; o indiv�duo � produzido por um ciclo
de reprodu��o, que precisa do indiv�duo para se perpetuar. Genos produz Phenon que
produz Genos. O DNA precisa das prote�nas que especifica, as quais o especificam como
especificador. A continuidade gen�tica precisa de uma atividade fenom�nica que se
reinicie sempre.�

Al�m disso, o aparentemente todo-poderoso DNA est� sujeito a fissuras, quebras,
brechas. E � a unidade global da organiza��o geno-fenom�nica que imp�e �s prote�nas
a dedica��o auxiliar de reparar, reajuntar, remendar, religar os fragmentos inv�lidos. Em
rela��o �s muta��es do DNA no processo reprodutivo, � a pr�pria unidade global que
restaura a sua organiza��o, quando a transforma (no caso feliz em que a muta��o gera
uma qualidade nova).

Os engramas gen�ticos se transformam em programas de acordo com as necessidades
e atividades. O que est� escrito nesses engramas � a formid�vel experi�ncia de nossa
linhagem, esp�cie, ordem (primatas), classe (mam�feros), filo (vertebrados), reino
(animal), organiza��o (viva). � esse capital gen�tico que garante a nossa autonomia.

A unidade global est� nos indiv�duos, que de modo rec�proco est�o nessa unidade global
que atravessa as gera��es. O indiv�duo est� em tudo aquilo que est� nos indiv�duos.

Dessa forma, os genes n�o s�o os Mestres do vivo: s�o apenas um momento de auto-
organiza��o. Neles se concentra, sob a forma de engrama, a mem�ria e a experi�ncia
heredit�ria. � a atividade de computa��o, pr�pria da auto-organiza��o, que os
transforma em programa. A auto (geno-feno)-eco-organiza��o � mestre-dependente e
produz a autonomia/depend�ncia o indiv�duo que a produz.

O c�rebro humano � um aparelho epigen�tico que depende do c�rculo genofenom�nico
(o qual, como veremos adiante, integra � e se integra � um grande c�rculo ego-s�cio-
cultural, em que a mente se forma como processo emergente, sem deixar de depender
do tecido cerebral. O menor de nossos pensamentos � insepar�vel das s�nteses e das
transforma��es moleculares � as quais tamb�m s�o insepar�veis da a��o dos genes
que est�o presentes nos neur�nios. � dessas m�ltiplas depend�ncias que emerge a
autonomia mental do ser humano, capaz de fazer escolhas e construir estrat�gias.

No que se refere � atividade cerebral humana, o inato e o adquirido n�o se op�em de
modo algum: na verdade, s�o� complementares. N�o podemos conseguir nada de
maneira aut�noma; nosso� c�rebro tem a aptid�o inata de adquirir aptid�es n�o inatas.
Quanto mais rico em compet�ncias � o dispositivo cerebral inato, mais rica � a
disponibilidade para o aprendizado e a realiza��o de tarefas aut�nomas.

H� mais. Nas condi��es hist�ricas deste fim de s�culo 20, a mente humana foi capaz de
tomar conhecimento, controle e posse dos genes dos quais ela depende. E assim
come�a a manipul�-los para os seus pr�prios prop�sitos. Um Saulo de Tarso moderno
poderia alegar: "� gene, onde est� tua vit�ria?"

Mas deixemos de lado esse lirismo. Devemos ter em mente que n�o � poss�vel escrever
nosso destino a n�o ser obedecendo � inscri��o gen�tica inclu�da em cada uma de
nossas c�lulas. Nossa autonomia � forjada nessa� servid�o. O indiv�duo atravessa um
destino que permite que ele se torne aut�nomo.

O gene significa ao mesmo tempo hereditariedade e heran�a, encargo e
d�diva,determina��o e autonomia, limita��o e possibilidade, necessidade e liberdade.

N�o nos voltamos s� para a reprodu��o, mas tamb�m para a frui��o da vida. A pr�pria
reprodu��o � tamb�m capaz de produzir indiv�duos que possam fru�-la. O amor e a
vol�pia usam o ato da reprodu��o para a sua realiza��o. Suas conseq��ncias podem
ser afastadas pela interrup��o do coito, preservativos, p�lulas. A sexualidade nos
invade, mas ela pr�pria � tamb�m invadida pelo gozo e pelo amor.

Se considerarmos nossa dupla depend�ncia,� a de Genos (os genes) e a de Oikos (o
ambiente), perceberemos que a primeira procura a autonomia individual em rela��o �
segunda. Perceberemos tamb�m que o fato de Genos depender de Oikos alimenta essa
autonomia. O fechamento gen�tico do indiv�duo impede que ele seja destru�do pela
invas�o de determinismos a ele externos. Al�m disso, sua abertura fenom�nica lhe
permite constituir e desenvolver suas pr�ticas aut�nomas.

Num plano mais� geral, nossa depend�ncia gen�tica permite que n�o sejamos
totalmente conduzidos por determinismos ecol�gicos e sociais. Nossa depend�ncia
ecol�gica possibilita que nutramos e desenvolvamos nossa autonomia. A autonomia
individual se forma e se mant�m com base nessas duas depend�ncias, as quais se
op�em mutuamente e nela se unem.

De uma forma mais profunda e b�sica, a autonomia do indiv�duo vivo � em� especial o
humano �� se afirma em sua condi��o de sujeito. Lembremo-nos de que ser sujeitado �
estar no centro de seu mundo, ou seja, o lugar egoc�ntrico do "para si". A pr�pria
constitui��o do sujeito � dial�gica, pois comporta simultaneamente um princ�pio de
exclus�o (nada pode estar no lugar dele) e um princ�pio e inclus�o (inclus�o num "n�s"
� a fam�lia, a esp�cie, a sociedade � e de exclus�o desse "n�s" em si pr�prio), no qual
est�o as atividades reprodutoras, a inscri��o heredit�ria, a inser��o da comunidade no
interior do sujeito. Da mesma forma, a auto-afirma��o do sujeito torna real a
apropria��o egoc�ntrica de sua inscri��o heredit�ria � n�o apenas a familiar, mas
tamb�m a antropol�gica, a primata, a mam�fera, etc.

Dessa maneira, o fatum gen�tico se transforma em destino pessoal no ato de auto-
afirma��o do sujeito. O indiv�duo-sujeito se apropria de seu Genos sem deixar de
depender dele, pois o ocupante egoc�ntrico �, ele pr�prio, dialogicamente ocupado por
Genus. O indiv�duo se torna aut�nomo quando se apropria de Genos, ao qual obedece.
Sua depend�ncia heredit�ria singular, sem deixar de ser depend�ncia, se torna,
profundamente, sua identidade pessoal: nossa hereditariedade plural nos transforma em
indiv�duos singulares. Vivemos nossas vidas pela ressuscita��o dos ingredientes das
vidas de nossos antecessores. Desse modo, possu�mos genes que nos possuem.

Vem da� o paradoxo: toda� exist�ncia humana � ao mesmo tempo atuante e atuada;
todo indiv�duo � uma marionete manipulada de dentro e de fora e, ao mesmo tempo, �
um ser que se auto-afirma em sua pr�pria qualidade� de sujeitado.

Evidentemente, � por meio da consci�ncia que � diferenciando-se dos animais � o ser
humano pode, em certas condi��es e ocasi�es �s vezes decisivas, manifestar sua
liberdade.

� claro que o indiv�duo humano n�o pode escapar de sua sorte paradoxal: � uma
pequena part�cula de vida, um instante ef�mero, uma insignific�ncia. Mas cont�m em si
a plenitude da realidade viva: a exist�ncia, o ser, os fazeres. Assim, ele cont�m a
totalidade da vida e ao mesmo tempo � uma unidade elementar dessa mesma vida.
Cont�m simultaneamente a plenitude da realidade humana, a consci�ncia, o
pensamento, o amor, a amizade e a pr�pria realidade da humanidade � tudo isso sem
deixar de ser a unidade elementar da humanidade.

Como veremos adiante, sua inscri��o numa cultura e numa sociedade faz com que ele
experimente uma nova depend�ncia quando lhe oferece a possibilidade de uma nova
autonomia e, �s vezes, o acesso � liberdade.

O Imp�rio Sociol�gico e o Dom�nio Cultural
Antes de tudo, h� o dom�nio sociocultural.

A cultura das sociedades arcaicas tornou poss�vel a realiza��o de indiv�duos que
desenvolveram uma extrema acuidade sensorial. Isso permitiu que eles captassem como
signos e mensagens os m�ltiplos indicadores e eventos de seu ambiente natural:
indiv�duos com aptid�es manuais polit�cnicas, mestres na arte de manejar suas armas
de ca�a, fabricar utens�lios e edificar suas habita��es.

�Os arcaicos s�o seres "livres", sem Estado, mas n�o s�o cidad�os. S�o livres mas se
submetem a tabus; livres em seu ambiente, mas limitados a ele; adquiriram autonomia
t�cnica, mas n�o conseguiram desenvolver o mundo das id�ias, o qual lhes possibilitaria
desenvolver sua autonomia mental.

As sociedades hist�ricas, j� dotadas de um Estado dominador, controlador,� d�o
liberdade �s elites tomando-a dos inferiores que assim s�o condenados � obedi�ncia e �
ignor�ncia. O Estado se inscreve na mente dos indiv�duos como um Superego, e nela
constr�i um altar dedicado � sua devo��o.

Em todas as sociedades a cultura se imp�e aos indiv�duos. O feto sofre influ�ncias
culturais na vida intrauterina (alimenta��o, sons, m�sicas), e desde o nascimento o
indiv�duo come�a a receber a heran�a cultural que garante a sua forma��o e
desenvolvimento como ser social;� ele sofre a influ�ncia de tabus, imperativos, regras
(que se inscrevem no tecido cerebral por meio da estabiliza��o eletiva de sinapses), e
tem fixados a si automatismos sociais.

Em todo indiv�duo, a heran�a cultural se mescla � hereditariedade biol�gica, o que
determina est�mulos ou inibi��es que modulam a opress�o dessa hereditariedade. Assim,
cada cultura, com seu sistema educacional, seu regime alimentar, seus padr�es de
comportamento, recalca, inibe, favorece, estimula, determina a express�o dessa
atitude, exerce seus efeitos no funcionamento do c�rebro e na forma��o da mente.�
Desse modo, interv�m na organiza��o e no controle do conjunto da personalidade.

A cultura inscrever� no indiv�duo o seu imprinting � express�o matricial
freq�entemente definitiva, que marca os indiv�duos em sua maneira de conhecer e
comportar-se desde a inf�ncia e se aprofunda por meio da� educa��o familiar e, a
seguir, pela escolar. O imprinting fixa o que est� prescrito e o que � interdito, o
santificado e o maldito. Implanta cren�as, id�ias e doutrinas que t�m for�a imperativa
de verdade ou evid�ncia. Enra�za nas mentes seus paradigmas, princ�pios que
comandam os esquemas e os modos explicativos, o uso da l�gica, as teorias,
pensamentos e discursos. O imprinting se faz acompanhar de uma normaliza��o que faz
com que se calem todas as d�vidas ou contesta��es de suas normas, verdades e
tabus. Vem da� o car�ter aparentemente inexor�vel dos determinismos internos �
mente.

O imprinting e a normaliza��o se reproduzem gera��o ap�s gera��o: "Uma cultura
produz os modos de conhecimento nos humanos a ela submetidos, os quais por seu
modo de conhecimento reproduzem a cultura, que produz esses modos de
conhecimento".
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Assim se consuma a domestica��o das mentes.

p�g. 2/2
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