Os Cinco Saberes do Pensamento Complexo
[Pontos de encontro entre as obras de Edgar Morin,
Fernando Pessoa e outros escritores]
Humberto Mariotti
p�g. 1/4
A vida � breve, a alma � vasta.
(Fernando Pessoa)
� �
O esfor�o para a reforma do modelo de pensamento que hoje predomina em nossa cultura
tem v�rias vertentes. Muitos s�o os seus proponentes e diversificadas as suas propostas.

A obra de Edgar Morin est� entre os pontos altos desse empreendimento. Em especial,
destaca-se a sua mais importante concep��o epistemol�gica, o pensamento complexo.
Nele n�o predomina o racioc�nio fragmentador (o modelo mental bin�rio do "ou/ou": ou
amigo ou inimigo; ou bem ou mal; ou certo ou errado; ou ocidente ou oriente etc.).
Tampouco prevalece o utopismo da primazia do todo � o sistemismo reducionista.

Uma vis�o de mundo abrangente deve nascer da complementaridade, do entrela�amento
� do abra�o, enfim � entre esses dois modelos mentais. Assim Morin denomina o
pensamento complexo: o pensamento do abra�o. Eis por que proponho, neste texto, falar
sobre o que chamo de cinco saberes do pensamento complexo: saber ver, saber esperar,
saber conversar, saber amar e saber abra�ar. Todos est�o inter-relacionados, abra�ados,
e por isso dependem uns dos outros para ser vividos em sua plenitude. Vejamos como.

Saber Ver
Jean-Paul Sartre, entre outros, percebeu que nossa exist�ncia � confirmada pelo olhar do
outro. Mas n�o � necess�rio ser um fil�sofo para chegar a essa conclus�o. Peter Senge1
relata que entre certas tribos do Natal, na �frica do Sul, o principal cumprimento � a
express�o Sawu bona, que quer dizer "eu vejo voc�". As pessoas assim saudadas
respondem dizendo Sikhona, que significa "eu estou aqui". Ou seja: come�amos a existir
quando o outro nos v�.

E mais: existe, entre tribos africanas que vivem abaixo do Saara, a �tica ubuntu, que
vem da tradi��o Umuntu ngumuntu nagabantu, que em zulu significa "Uma pessoa se
torna uma pessoa por causa das outras". Para esses povos, quando um indiv�duo passa
por outro e n�o o cumprimenta, � como se houvesse se recusado a v�-lo, o que significa
negar-lhe a exist�ncia.

Saber ver � antes de mais nada saber ver os nossos semelhantes. De fato, a localiza��o
anat�mica dos nossos olhos mostra que eles est�o orientados para ver o mundo � isto �,
para ver o outro. Todos sabemos que h� certas partes de nossa anatomia que s�
podemos enxergar em �ngulos muito prec�rios, e outras que n�o podemos ver de modo
algum. �

Conv�m notar que a unidimensionaliza��o da vis�o � que nada mais � do que o resultado
da apropria��o do olhar pela cultura dominante � � um dos fen�menos mais alienantes do
nosso cotidiano. A iconiza��o da sociedade, isto �, o fornecimento de um m�nimo de
palavras escritas e um m�ximo de imagens padronizadas, conduz a uma diminui��o do
contato com a raz�o � o logos. Disso resulta a restri��o ao acesso das pessoas ao
imagin�rio, o que as leva a ver o mundo de modo concreto e literal. �

Essa � uma das principais causas da redu��o da capacidade de lidar com a palavra e, por
conseguinte, de conversar. � uma forma de dificultar a forma��o de consensos derivados
da experi�ncia e perpetuar a unidimensionaliza��o. Trata-se de reprimir o imagin�rio e a
diversidade em todas as suas dimens�es: na linguagem escrita e falada, na express�o
corporal, na produ��o de imagens e s�mbolos, enfim, em todos os meios pelos quais o
indiv�duo pode se opor � massifica��o. �

As imagens e os s�mbolos veiculados pela linguagem tendem a quebrar a linearidade do
nosso pensamento. Nesse sentido, os mitos s�o indispens�veis � facilita��o das
conversa��es e, em conseq��ncia, � forma��o de consensos. A experi�ncia mostra que
ao compartilhar hist�rias, lendas e narrativas, as pessoas v�em abrandado o seu �nimo
competitivo e litigante.

No entanto, como alerta o historiador e mit�logo Joseph Campbell, os s�mbolos t�m, ao
longo da hist�ria, levado povos inteiros a comportamentos violentos e destrutivos. Para
Campbell, muitos desses comportamentos resultam da interpreta��o literal do conte�do
de mitos her�icos. As met�foras s�o tomadas como reprodu��es exatas do real, e desse
modo reaplicadas � pr�tica.

� claro que essa esp�cie de compreens�o pressup�e mentes como as nossas,
condicionadas por uma cultura cujos mitos b�sicos configuram uma intermin�vel cr�nica
de guerras, pilhagens, vingan�as e puni��es. � dessa maneira que os fundamentalismos
refor�am os condicionamentos, que por sua vez refor�am os fundamentalismos, e assim
por diante.

A primitiviza��o de nossas mentes pela supress�o da palavra (em especial a palavra
escrita) traduz-se na pr�tica pelo estreitamento de nossa percep��o de mundo. Dessa
maneira, ela passa a depender de quase que um �nico sentido � a vis�o. A audi��o vem
em segundo lugar, mas com menos destaque. Essa circunst�ncia nos torna cada vez
menos capazes de perceber a import�ncia do conjunto.

Perdemos a abrang�ncia de avalia��o proporcionada pela totalidade dos sentidos, e
dessa forma nos afastamos da perspectiva sist�mica de estar no mundo. Em
conseq��ncia, as percep��es veiculadas pelos sentidos que t�m sido reprimidos e
anestesiados s�o desvalorizadas, o que favorece a unidimensionaliza��o e a manipula��o.


� indispens�vel que evitemos assumir uma vis�o conspirat�ria desse fen�meno, para n�o
cairmos mais uma vez no eterno equ�voco (ou conveni�ncia) de atribuir as causas de
nossas dificuldades s� a fatores externos, dos quais nos julgamos v�timas indefesas.
Conv�m que estejamos alertas para essas circunst�ncias, pois, ao que parece, muitos de
n�s est�o convencidos de que a aliena��o das massas, com todas as suas
conseq��ncias, resulta da atua��o de um establishment onipotente, ao qual � in�til
resistir. � com essa esp�cie de desculpa que costumamos fugir � responsabilidade de ter
de lidar com o real.

Conv�m n�o esquecer que tudo isso vem acontecendo com a nossa anu�ncia, consciente
ou n�o. Essa postura de v�timas, ali�s, expressa-se em nossa tend�ncia a dar pouco
valor �s iniciativas individuais para a transforma��o social: se sou uma v�tima, e ainda
mais estando isolado, como poderei mudar alguma coisa? Muitos parecem n�o entender
que para superar essa circunst�ncia � fundamental o desenvolvimento do fabul�rio, que
aglutina as pessoas. Parecem n�o compreender tamb�m que para isso a palavra, as
imagens, os sons e as sensa��es t�cteis e olfativas precisam caminhar juntos, como
meios de percep��o e integra��o de nossa experi�ncia no mundo. �

O que aconteceria se de repente perd�ssemos a vis�o, ficando dependentes dos demais
sentidos? Essa foi a id�ia que levou o escritor portugu�s Jos� Saramago a produzir o
romance Ensaio Sobre a Cegueira. A hist�ria se passa em uma grande cidade, onde as
pessoas come�am a ficar s�bita e inexplicavelmente cegas. Pior ainda, o problema �
contagioso. O alastramento do surto marca o in�cio de uma s�rie de terr�veis
acontecimentos, centrados num s� fato: as desventuras de uma sociedade que,
acostumada � unidimensionalidade, a um modo quase �nico de perceber o mundo, � de
s�bito levada a depender por inteiro dos demais sentidos, que sempre havia mantido em
plano secund�rio.

Continuemos com o romance de Saramago. Os casos de cegueira v�o se multiplicando. A
primeira provid�ncia tomada � previs�vel: os cegos s�o confinados, com guardas armados
a vigi�-los � a cl�ssica atitude concentracion�ria, � qual nossa cultura recorre sempre
que tem de lidar com pessoas que de um modo ou de outro se revelam diferentes. A
hist�ria prossegue, e logo se estabelecem entre os cegos confinados a��es que oscilam
entre a competi��o e a coopera��o.�
Seguem-se cenas em que essas circunst�ncias se generalizam, e a disputa pela comida
leva a conseq��ncias degradantes, que se alastram para fora do ambiente do
confinamento.

O livro � uma met�fora das desventuras de uma sociedade cujo principal modo de
perceber o mundo foi suspenso. A isso se adiciona o fato de que esse modo de
percep��o, por sua pr�pria natureza, impele as pessoas a buscar referenciais externos,
com o resultante apagamento progressivo da vida interior. No romance, ao se verem
privadas desses referenciais (impedidas, por exemplo, de consultar o Grande Guru que � a
televis�o), elas se d�o conta de seu vazio interno e partem para a busca de uma
solidariedade perdida, o que � feito de modo canhestro e ineficaz. N�o se pode, ali�s,
esperar outra coisa de indiv�duos mais preparados para a competi��o do que para a
parceria.

O romance de Saramago pode ser lido como um questionamento ao pensamento �nico,
apropriado pelo poder de uma cultura em que o homem perdeu o sentido da globalidade e
o de si mesmo. Nesse contexto, a proposta do pensamento complexo corresponde a uma
retomada da pluri-sensorialidade. Esta pode ser considerada um equivalente org�nico da
transdisciplinaridade � uma forma de ver e entender o mundo, traduzida em um saber
que questiona a cegueira do modelo mental dominante.

Esse detalhe pode n�o ser claro para muitos de n�s, mas n�o escapou � sensibilidade de
um grande poeta. Falo de Fernando Pessoa, em cujos versos se l�: �

E penso com os olhos e com os ouvidos
E com as m�os e com os p�s
E com o nariz e com a boca.2

O que nos conduz de volta ao marco inicial: saber ver � saber ver o outro, �nico ponto
de partida humano para come�ar a enxergar o mundo. Ou, como diz Pessoa,

O essencial � saber ver,
Saber ver sem estar a pensar,
Saber ver quando se v�,
E nem pensar quando se v�
Nem ver quando se pensa.

Mas isso (tristes de n�s, que trazemos a alma vestida!),
Isso exige um estudo profundo,
Uma aprendizagem de desaprender.3

A express�o "trazemos a alma vestida", pode ser vista como uma alus�o ao fato de nossa
cultura estar atrelada ao modo de pensar bin�rio, ou pensamento linear, o qual estreita e
obscurece nossos horizontes mentais, e assim nos impede de perceber muitas das
nuan�as da realidade. Trata-se de um padr�o que, entre muitas outras coisas, privilegia o
conhecimento tecnocient�fico e deixa em segundo plano a vertente human�stica do
conhecer.

J� versos como "isso exige um estudo profundo/uma aprendizagem de desaprender" nos
conduzem ao que Morin viria reconhecer como a necessidade da reforma do sistema de
pensamento acima mencionado, o que gerou sua atitude epistemol�gica fundamental: o
pensamento complexo. � indispens�vel � sustenta o pensador franc�s � aprender a
aprender.

Tudo isso visto, conv�m lembrar que os poemas aqui citados foram escritos no come�o
do s�culo 20 (Pessoa morreu em 1935). Ou seja, bem antes de se come�ar a falar de
modo constante em complexidade, reforma do pensamento, aprender a aprender e temas
semelhantes.

O pr�prio Morin v� em Pascal a inspira��o inicial de seu pensamento complexo. Percebe-
se, ent�o, como a vasta cultura liter�ria e filos�fica de Morin � � qual ele nunca deixou
de recorrer � inspirou muitas de suas descobertas mais importantes. Assim, sua
conhecida admira��o pelos poetas e ficcionistas s� faz enaltecer o seu trabalho. �

Falemos mais um pouco sobre Fernando Pessoa. Os famosos heter�nimos, por exemplo
(Ricardo Reis, �lvaro de Campos, Alberto Caeiro e outros menores), correspondem �s
partes que comp�em o todo de sua obra; e esse todo retroage sobre as partes
realimentando-as. Eis aqui um dos princ�pios do pensamento complexo: as partes
integram o todo mas n�o perdem suas caracter�sticas individuais.

Os heter�nimos s�o partes, mas a obra pessoana n�o perde a unidade por causa da
diversidade deles. Trata-se de uma evid�ncia marcante da realidade do complexo que,
como observa Morin, vem do latim complexus � aquilo que � tecido junto. Como na
met�fora moriniana: os fios comp�em o tapete; este s� � tapete por causa dos fios; mas
o que o constitui � a rela��o entre os fios de sua contextura e o conjunto da tape�aria.

Em poucas obras liter�rias o fen�meno da unitas multiplex (unidade na multiplicidade)
surge com tanto vigor como nos trabalhos de Pessoa.
Em meu livro As Paix�es do Ego4 � do qual deriva este trabalho �, menciono ainda outra
das m�ltiplas faces da contribui��o pessoana. Al�m do que se viu acima, Pessoa figura
entre os primeiros criadores liter�rios a ter a intui��o da fenomenologia, sem d�vida uma
das vertentes do pensamento complexo.

Sabe-se que a poesia de Alberto Caeiro inclui a investiga��o de se a linguagem humana �
ou n�o capaz de representar o real. Caeiro concluiu que ela n�o tem essa capacidade, ou
a tem de forma limitada. Assim, diante da realidade o poeta opta por descrev�-la como
ela se apresenta; busca mais mostrar do que explicar a experi�ncia do ser humano em
sua intera��o com o mundo.

A c�lebre frase "voltar �s coisas mesmas", de Edmund Husserl � introdutor da
fenomenologia e da filosofia moderna na Alemanha �, significa que o esfor�o
fenomenol�gico implica suspender os preconceitos, as id�ias pr�vias, as teorias e,
mediante essa disposi��o, observar os fen�menos tal como eles se apresentam � nossa
experi�ncia imediata.

O �nimo transcendentalista de Husserl acabou por distanciar a fenomenologia da viv�ncia
do cotidiano. Pessoa expressa em termos po�ticos o que Husserl � ao menos nas etapas
iniciais do m�todo fenomenol�gico � diz em linguagem filos�fica. Seu trabalho revela
como a poesia, na qualidade de meio de compreens�o do mundo, tem tanto a contribuir
quanto a filosofia � n�o fosse ele, al�m de poeta, tamb�m um fil�sofo.

voltar
p�g. 2/2