A Casa Mundial
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III

A estabilidade de nossa grande casa mundial envolver� uma revolu��o de valores para
acompanhar as revolu��es cient�fica e de liberdades que varrem o planeta. Rapidamente
devemos mudar de uma sociedade orientada para as "coisas" para uma sociedade
orientada para as "pessoas". Quando m�quinas e computadores, lucro e propriedade s�o
considerados mais importantes que as pessoas, o trip� gigante do racismo, materialismo e
militarismo n�o pode ser derrubado. Uma civiliza��o pode afundar t�o prontamente pela
fal�ncia �tica e espiritual como pela fal�ncia financeira.

Tal revolu��o de valores deve ir al�m dos tradicionais capitalismo e comunismo. Devemos
admitir que o capitalismo tem deixado uma lacuna entre riqueza sup�rflua e pobreza
abjeta; tem criado condi��es que permitem que as necessidades b�sicas sejam subtra�das
a muitos para dar luxos a uns poucos; e tem incentivado homens mesquinhos a se
tornarem frios e inconscientes, de forma que, como David diante de L�zaro, deixam de se
comover diante da humanidade sofrida e empobrecida. A avidez pelo lucro, quando se
torna a �nica base do sistema econ�mico, encoraja a competi��o desenfreada e as
ambi��es ego�stas levando os homens a serem mais centrados em si que nos outros. Da
mesma forma, o comunismo reduz os homens a uma engrenagem na m�quina do estado.
Os comunistas talvez discordem, dizendo que na teoria marxista o estado � uma
"realidade interina" que "se desmanchar�" quando surgir a sociedade sem classes. Em
teoria isto � verdade, mas tamb�m � verdade que enquanto durar o estado, ele � um fim
em si mesmo. O homem � o meio para um fim. Ele n�o tem direitos inalien�veis. Seus
�nicos direitos v�m do estado e s�o conferidos por este. Sob tal regime a fonte da
liberdade se esgota, posto que restritos os direitos de imprensa e reuni�o, de votar, ouvir
e ler.

A verdade n�o se encontra nem no capitalismo tradicional, nem no comunismo cl�ssico.
Os dois representam uma verdade parcial. O capitalismo deixou de ver a verdade do
coletivismo. O comunismo deixou de ver a verdade do individualismo. O capitalismo n�o
percebe que a vida � social. O comunismo n�o percebe que a vida � pessoal. A sociedade
boa e justa n�o � a tese do capitalismo nem a ant�tese do socialismo, mas uma
democracia socialmente consciente que concilia as verdades do individualismo e do
coletivismo.

Temos visto alguns movimentos nessa dire��o. A Uni�o Sovi�tica gradualmente
distanciou-se de seu r�gido comunismo e come�ou a preocupar-se com os bens de
consumo, a arte e um aumento nos benef�cios concedidos ao cidad�o comum. Ao mesmo
tempo, atrav�s de constantes reformas sociais, temos visto muitas modifica��es ao
liberalismo econ�mico. Os problemas que enfrentamos agora exigem que se v� al�m das
palavras de ordem. Em �ltima an�lise, os slogans de direita sobre "controle estatal" e
"socialismo emergente" s�o t�o desprovidos de sentido quanto os slogans da Guarda
Vermelha chinesa sobre "revisionismo burgu�s". Uma abordagem inteligente dos problemas
da pobreza e do racismo nos levar� a ver que as palavras do salmista - "A terra � do
Senhor, e Dele sua abund�ncia". � s�o um julgamento sobre nosso uso e abuso da riqueza
e recursos que nos foram oferecidos.

Uma verdadeira revolu��o de valores em breve nos levar� a questionar a justi�a de muitas
de nossas pol�ticas presentes e passadas. Somos chamados a fazer o papel do Bom
Samaritano na estrada da vida; mas isto ser� apenas o come�o. Um dia toda a estrada de
Jeric� dever� se transformar para que homens e mulheres n�o sejam roubados e
espancados ao viajar pela vida. A verdadeira compaix�o � mais que jogar uma moeda ao
pedinte; � perceber que um edif�cio que produz pedintes precisa ser remodelado.

Uma verdadeira revolu��o de valores logo ver� com maus olhos o flagrante contraste
entre pobreza e riqueza. Zelosamente indignada, ver� milhares de trabalhadores sem
emprego e com sal�rios reduzidos como resultado da automa��o, enquanto o lucro dos
empregadores se mant�m intacto; e ent�o dir�: "Isto n�o � justo". Lan�ar� um olhar para
o outro lado do oceano e ver� capitalistas ocidentais investindo fortunas na �sia, �frica e
Am�rica do Sul apenas para levar o lucro e sem nenhuma preocupa��o com a melhoria
social destas na��es; e dir�: "isto n�o � justo". Contemplar� a nossa alian�a com os
senhores de terra da Am�rica do Sul e dir�: "isto n�o � justo". A arrog�ncia ocidental que
pensa que tem tudo a ensinar e nada a aprender com os outros n�o � justa. Uma
verdadeira revolu��o de valores lan�ar� m�o sobre a ordem mundial e dir� da guerra:
"Esta forma de acertar desentendimentos n�o � justa". O neg�cio de queimar corpos
humanos com napalm e encher as casas de �rf�os e vi�vas, de injetar �dio nas veias de
pessoas normalmente humanas, tirar os homens de campos de batalha sangrentos e
devolv�-los parapl�gicos e insanos; nada disso pode estar associado � sabedoria, �
justi�a ou ao amor. Uma na��o que prossegue, ano ap�s ano, gastando mais dinheiro em
defesa militar do que em refor�o social se aproxima de sua morte espiritual.

Os Estados Unidos, a na��o mais poderosa do mundo, bem poderia liderar esta revolu��o
de valores. Nada nos impede de pagar sal�rios adequados aos professores, assistentes
sociais e outros servidores da sociedade a fim de garantir que tenhamos nesses cargos os
melhores profissionais, respons�veis por orientar as futuras gera��es. Nada a n�o ser uma
falta de vis�o nos impede de pagar sal�rios adequados a cada norte-americano, seja ele
algu�m que trabalha no hospital, na lavanderia, numa casa de fam�lia ou na ind�stria.

Nada al�m de miopia nos impede de garantir um valor anual m�nimo para garantir a
sobreviv�ncia de cada fam�lia norte-americana. Nada a n�o ser um desejo tr�gico de
morte nos impede de reordenar nossas prioridades para que a busca da paz tome
preced�ncia sobre a busca da guerra. Nada nos impede de remodelar o recalcitrante
status quo com nossas m�os doloridas at� que assuma a forma de uma irmandade.

Esse tipo de revolu��o positiva de valores � nossa melhor defesa contra o comunismo. A
guerra n�o � a resposta. O comunismo nunca ser� derrotado pelo uso de bombas
at�micas ou armas nucleares. N�o sejamos arrebatados por aqueles que pedem guerra e
que, em virtude de paix�es irrefreadas, incitam os Estados Unidos a diminuir sua
participa��o nas Na��es Unidas. Estes s�o tempos que exigem s�bio controle e calma
pondera��o. N�o devemos chamar a todos de comunistas ou pacifistas por advogar a
entrada da China nas Na��es Unidas, ou por reconhecer que o �dio e a histeria n�o s�o
as respostas definitivas aos problemas destes tempos turbulentos. N�o devemos nos
envolver num anti-comunismo negativo, mas num esfor�o positivo em prol da democracia,
percebendo que nossa maior defesa contra o comunismo � agir ofensivamente em favor
da justi�a. Com a��o afirmativa devemos tentar eliminar a pobreza, a inseguran�a e a
injusti�a que constituem o solo f�rtil no qual o comunismo cresce e se desenvolve.

Estes s�o tempos revolucion�rios. Por toda a terra os homens se levantam contra velhos
sistemas de explora��o e opress�o, e do ventre de um mundo fr�gil novos sistemas de
justi�a e igualdade est�o nascendo. Os descamisados e descal�os desta terra est�o se
levantando como nunca antes. "Os povos que estavam na escurid�o viram uma grande
luz". N�s no Ocidente devemos apoiar estas revolu��es. � triste que por comodismo,
complac�ncia, um m�rbido temor do comunismo, e nossa tend�ncia a nos adaptarmos �
injusti�a, as na��es ocidentais, que iniciaram muito do esp�rito revolucion�rio do mundo
moderno, tenham se transformado agora em arqui-anti-revolucion�rios. Isto levou muitos
� percep��o de que apenas o marxismo det�m o esp�rito revolucion�rio. O comunismo �
um julgamento de nossa inabilidade de construir uma real democracia e levar adiante as
revolu��es que iniciamos. Nossa �nica esperan�a hoje repousa na capacidade de
recapturar o esp�rito revolucion�rio e sair pelo mundo, por vezes hostil, declarando
oposi��o � pobreza, ao racismo e ao militarismo. Com este poderoso compromisso
modificaremos o status quo e os costumes injustos, assim apressando a chegada do dia
em que "todo vale ser� exaltado, toda montanha rebaixada: o torto ser� endireitado e
feitos planos os lugares escarpados".

Uma genu�na revolu��o de valores significa, em �ltima an�lise, que nossa lealdade deve
tornar-se ecum�nica em vez de setorial. Todas as na��es devem agora desenvolver uma
lealdade priorit�ria � humanidade como um todo para preservar o que h� de melhor em
suas sociedades individuais.

Este chamamento por uma parceria mundial que estende o zelo de vizinhos para al�m de
nossa tribo, ra�a, classe ou na��o � na realidade um chamamento pelo amor incondicional
e todo-abrangente por todos os homens. Este conceito freq�entemente mal
compreendido e mal interpretado tornou-se agora uma necessidade absoluta da
sobreviv�ncia. Quando falo de amor falo daquela for�a que todas as grandes religi�es
viram como o supremo princ�pio unificador da vida. O amor � a chave que abre a porta
que conduz � realidade �ltima. Esta cren�a Hindu-Isl�mica-Crist�-Judaica-Budista sobre a
realidade �ltima est� belamente condensada na primeira Ep�stola de S�o Jo�o:

Car�ssimos, amemo-nos uns aos outros, porque a caridade vem de Deus:
E todo o que assim ama, nasceu de Deus, e
Conhece a Deus. Quem n�o ama n�o conhece a Deus
Porque Deus � caridade�.Se nos amarmos mutuamente,
Deus permanece em n�s e a sua caridade � em n�s perfeita.
4:7

Esperemos que este esp�rito torne-se a ordem do dia. N�o podemos mais nos dar ao luxo
de adorar o Deus do �dio ou ajoelhar no altar da retalia��o. Os oceanos da hist�ria
encapelam-se nas mar�s do �dio. Ali jazem os destro�os de na��es e indiv�duos que
perseguiram este caminho. Como disse Arnold Toynbee em um discurso: "O amor � a for�a
�ltima que faz a escolha salvadora da vida e do bem contra a escolha demon�aca da
morte e do mal. Portanto, a primeira esperan�a em nosso invent�rio deve ser a esperan�a
de que o amor ter� a �ltima palavra".

Agora nos defrontamos com o fato de que o ontem se tornou hoje. Somos confrontados
com a urg�ncia feroz do agora. Neste desenrolar de vida e hist�ria h� algo que se
denomina chegar tarde demais. A procrastina��o � o ladr�o do tempo. A vida
freq�entemente nos deixa nus e miser�veis diante de uma oportunidade perdida. A mar�
dos neg�cios humanos n�o fica permanentemente na enchente. Ainda que pe�amos
desesperados por uma pausa na passagem do tempo, ele se mostra indiferente e segue
correndo. Por sobre os ossos calcinados e destro�os amontoados de in�meras civiliza��es
l�-se as palavras "tarde demais". No livro invis�vel da vida, que fielmente relata nossos
zelos e neglig�ncias, "a m�o escreve, e tendo escrito, move-se adiante..." Ainda temos
uma escolha: coexist�ncia n�o-violenta ou co-aniquila��o violenta. Esta pode bem ser a
�ltima chance de escolhermos entre caos e comunidade.

Notas

1 Abraham Mitrie Rihbany, Wise Men from the East and from the West (Houghton Mifflin,
1922) 137.

2 Harper, 1944.
Reprinted for educational purposes only from the Beacon Press edition, 1968. It is a
violation of US copyright laws to sell or profit from this material.


Em: Where do we go from here: Chaos or Community, Martin Luther King Jr., 1967


Tradu��o do original em ingl�s: T�nia Van Acker

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