Morin Fala Sobre as
Perspectivas Contempor�neas
Entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo, em 09/02/2003
Apesar do que chama de amea�a do choque das barb�ries - entre Ocidente e
Oriente -, o pensador franc�s v� solu��es para as crises do homem moderno,
sobretudo na 'periferia'

NAPOLE�O SAB�IA
Correspondente

PARIS - Um dos �ltimos "monstros sagrados" em vida, e todo aceso, da belle �poque
intelectual francesa - em que pontificaram Sartre, Camus, Foucault, Aron, Bourdieu -,
Edgar Morin, aos 81 anos, continua cultivando m�ltiplas curiosidades, produzindo
conhecimentos no campo das humanidades e pondo seu acervo de intui��es e saberes a
servi�o das causas inovadoras.
A busca de um novo humanismo com padr�es �ticos e est�ticos que o proteja ou o
torne menos vulner�vel ao rolo compressor da ci�ncia "pura e dura", da tecnologia e da
economia se inscreve nesse espectro de interesses do soci�logo e fil�sofo franc�s, que
receber�, no correr do ano, o t�tulo de Doutor Honoris Causa de v�rias universidades
brasileiras.
Com uma obra diversa e de refer�ncia, j� traduzida em mais de cem pa�ses, Edgar Morin
est� enriquecendo-a agora, com o lan�amento de novo livro sobre suas concep��es no
terreno da �tica. Nesta entrevista da Estado, o pensador fala sobre as perspectivas do
homem e da humanidade sob a amea�a do que chama, n�o de choque de civiliza��es,
mas de barb�ries.

Estado - Na sua secret�ria eletr�nica o senhor registrou mensagem aos amigos
alertando-os para a necessidade de se "apertar o cinto" neste novo ano, porque ele
"ser� severo". O que o preocupa tanto?
Edgar Morin - O risco maior que se corre � o do choque de barb�ries, chamado
pudicamente de choque das civiliza��es. Temos frente a frente dois manique�smos - o
dos Estados Unidos que pensam representar o imp�rio do bem e o dos terroristas do Al-
Qaeda que, desgra�adamente, se consideram tamb�m a encarna��o do reino do bem.
Cada um v� no bem do outro o mal absoluto. N�o desejo, por�m, fazer uma simetria
nisso. Apesar da tenta��o hegemonista e dos elementos negativos de sua pol�tica
externa, acentuados pela presid�ncia de Bush, os Estados Unidos t�m de ser
compreendidos no que eles oferecem ao mesmo tempo de pior e de melhor ao mundo.

Estado - Por exemplo?
Morin - N�o podemos esquecer da �poca em que parte ponder�vel da intelligentsia
mundial idealizava a Uni�o Sovi�tica como o para�so, o reino do bem e estigmatizava os
Estados Unidos como o mal absoluto. Tiveram os idealistas do "futuro radioso" raz�o?
In�til acrescentar ao que todos j� sabem sobre a trag�dia provocada pelo comunismo.
Mas, voltando ao momento atual, temo que o planeta se encaminhe progressivamente
para um impasse generalizado. Como adolescente, vi a marcha - que poderia ter sido
contida - do mundo para a 2.� Guerra. E me pergunto agora se n�o estamos, embora em
outro contexto hist�rico, no mesmo caminho 60 anos depois.

Estado - No que se baseia essa vis�o?
Morin - Vemos se multiplicarem os fen�menos negativos como os conflitos de car�ter
�tnico e religioso. O processo de globaliza��o em curso implicando abertura e entente
entre os povos se defronta contraditoriamente com essa tend�ncia para um fechamento
com inexced�vel agressividade. Da� a dificuldade para se introduzirem inst�ncias
reguladoras da economia mundial, reclamadas em toda parte, inclusive por Wall Street. �
paradoxal o fato de a globaliza��o desenhar o quadro de uma sociedade-mundo, dar a
esta uma infra-estrutura maravilhosa de comunica��o, gra�as � internet, e n�o poder
dotar tal arquitetura pol�tica de centros de decis�es ou de autoridades com a
legitimidade necess�ria para tratarem os problemas cruciais. Ao mesmo tempo,
combinada com as crises econ�micas peri�dicas, assistimos pelo mundo afora �
decomposi��o do esp�rito c�vico e � progress�o da viol�ncia urbana. Esta, em Paris,
Londres ou S�o Paulo, se nutre em grande parte da mesma causa - a exclus�o social.
H� outros fermentos desse quadro de pesadelo.

Estado - Quais?
Morin - A guerra prov�vel no Oriente M�dio. Sem d�vida, Saddam Hussein � um tirano
horroroso, mas o que acontecer� depois no Iraque, � luz do que j� se passa hoje no
Afeganist�o desintegrado, onde o novo poder controla apenas Cabul? Nem mesmo a Al-
Qaeda foi liquidada. H� o trauma do mundo mu�ulmano, mais de 1 bilh�o de pessoas,
pela pol�tica de dois pesos e duas medidas com que o Ocidente trata a quest�o israel-
palestina. Enquanto n�o se instilar um m�nimo de eq�idade nesse dossi� explosivo, um
acordo nas condi��es j� conhecidas, ou seja, o retorno �s fronteiras de 1967 com o
desmantelamento das col�nias judaicas e a divis�o de Jerusal�m, o c�ncer que corr�i o
Oriente M�dio tende a afetar o resto do mundo.

Estado - A esse ponto?
Morin - Sim, porque o Oriente M�dio � uma zona s�smica em mat�ria geopol�tica, ela
protagoniza o encontro e o choque de tr�s religi�es, o confronto da laicidade com as
formas sacramentais de comportamento, tudo isso marcado pela impaci�ncia dos jovens
com a pobreza e pela resigna��o dos mais velhos ao status quo. O c�ncer tende a se
planetarizar com o c�lculo perverso feito pela Al-Qaeda encampando uma causa justa -
a dos palestinos, pela qual Bin Laden nunca se interessou - para aumentar a audi�ncia
de sua causa horr�vel.

Estado - O que fazer ent�o?
Morin - H� de se pensar naquilo que chamo de uma nova pol�tica de civiliza��o. Uma
pol�tica que reconhe�a n�o apenas os valores das sociedades ocidentais, tais como as
liberdades, os direitos do homem e da mulher, mas tamb�m as virtudes das outras
sociedades ditas perif�ricas nas quais se inclui o mundo mu�ulmano. O processo
renovador come�a sempre por pequenas ilhas de experimentos, de desvios criativos, que
se desenvolvem em tend�ncias e se transformam, afinal, em p�los catalisadores de uma
pol�tica pela renova��o da ordem internacional. � por isso que acredito em Porto Alegre
como laborat�rio de id�ias, de proposi��es alternativas, suscet�veis de fecundar formas
de democracia local, de democracia econ�mica, de democracia social. Ainda nessa
perspectiva, � encorajador o fato de que a China e o Vietn� se abrem ao mercado
mundial, aderem sob certas condi��es � pr�tica do capitalismo. A hora �, portanto, para
as proposi��es, que n�o excluem os movimentos de protesto, a fim de que o mundo
redescubra outra forma de futuro. O progresso n�o � mais uma coisa certa, uma
promessa na qual se deva confiar como no passado. Para restaurarmos a esperan�a,
precisamos mostrar que existem outras vias conduzindo a uma pol�tica de civiliza��o,
capaz de conciliar as exig�ncias econ�micas do modelo liberal com as demandas sociais
pr�prias da democracia.

Estado - Ao preconizar uma nova pol�tica de civiliza��o, o senhor insiste na id�ia da
"refunda��o �tico-econ�mica". O que � isso?
Morin - A economia sempre esteve sob o controle da �tica por interm�dio da pol�tica,
que elabora e introduz as leis que informam os processos e penas judiciais contra os
autores de atos de corrup��o, de falcatruas financeiras e outros crimes ditos de
colarinho-branco. Mas houve nos �ltimos anos um retrocesso no campo �tico, como o
demonstram esc�ndalos envolvendo empresas gigantescas tipo Enron, na esteira da
aboli��o de uma s�rie de normas reguladoras das atividades econ�micas e financeiras.
Felizmente, diante do avan�o dos m�todos ilegais e imorais em certos setores de
atividade, uma rea��o em favor de exig�ncias �ticas na condu��o da economia est�
sendo desenvolvida nos Estados Unidos e na Europa por diversos movimentos
associativos, incluindo produtores rurais, empres�rios, operadores de capitais.

Estado - O senhor � um dos ben�volos propagandistas dos investimentos �ticos...
Morin - Os fundos de investimentos �ticos, em expans�o no mundo desenvolvido e j�
totalizando alguns bilh�es de d�lares, ilustram bem essa preocupa��o com o que eu
chamaria de refunda��o �tico-econ�mica, que abrange tamb�m exig�ncias de ordem
ambiental, considerado a extens�o dos danos causados pela polui��o. Foi dentro desse
esp�rito que se iniciou entre diversos pa�ses europeus, latino-americanos e africanos
outro movimento - o do com�rcio eq�itativo. V�rios de meus amigos e eu pr�prio s�
consumimos, hoje, o caf� da Am�rica Latina vendido pela sistema de distribui��o
eq�itativa.
Livre da gan�ncia desenfreada dos intermedi�rios, ele assegura um pre�o correto para
os pequenos produtores e tamb�m para os consumidores. O raio de a��o do com�rcio
eq�itativo precisa ser agora ampliado com a cria��o de novos lobbies dos consumidores
associados aos movimentos da cidadania. S� assim, mediante press�es sobre os poderes
p�blicos e os atores respons�veis do mercado, � que se conseguir� a preval�ncia por
inteiro da moral nas atividades produtivas. Enfim, � preciso restaurar o primado da
pol�tica sobre a economia.

Estado - No mundo da complexidade e da informa��o, exigindo presteza no trato das
m�ltiplas quest�es da sociedade, que devem fazer os homens pol�ticos para estar �
altura?
Morin - Os partidos pol�ticos em geral est�o esclerosados em toda a parte.
Seus membros se ocupam basicamente das coisas simples do dia-a-dia, porque se
desorientam quando se defrontam com a complexidade. Na verdade, s�o poucos os que
estudam os problemas da sociedade complexa em que vivemos comportando outras
formas de risco, de incerteza e exigindo o aprendizado da hist�ria e da compreens�o,
indispens�vel � paz mundial. Tamb�m n�o houve at� agora nenhuma reforma do ensino
para permitir abordagem metodol�gica da quest�o e de suas incid�ncias sobre a
condi��o humana.

Estado - Que rumo o senhor apontaria aos pol�ticos?
Morin - Eu vejo a coisa em duas dimens�es: primeiro, temos de convir que a pol�tica
necessita urgentemente ser fecundada por novas id�ias, id�ias que surgem muitas vezes
em centros ou clubes de reflex�o das periferias, de laborat�rios de ci�ncias humanas
itinerantes, como o de Porto Alegre.
Paralelamente, coloca-se o problema da reeduca��o e/ou da autoeduca��o dos
pol�ticos. Do contr�rio, eles acabar�o dominados de vez pelos t�cnicos ou tecnocratas,
que privilegiam o enfoque unidisciplinar, fechado, fundado nos modelos matem�ticos que
s�o redutores. Ora, nem todos os elementos essenciais da condi��o humana podem ser
quantificados. A rigor, os problemas da sociedade complexa devem ser tratados no plano
da qualidade, a come�ar pela qualidade da vida - e tal exig�ncia passa imperativamente
pelo enfoque plurisdiciplinar das quest�es.

Estado - Ent�o, qual seria a conclus�o de seu diagn�stico?
Morin - Em suma, pelo meu diagn�stico, tr�s dos quatro motores - a ci�ncia, a t�cnica,
a economia - que impulsionam a nave espacial Terra est�o desregulados por causa da
avaria do quarto e principal motor - a pol�tica.
Da� o fato de estarmos �s voltas com as crises das t�cnicas industriais poluentes, das
pr�ticas escusas de um capitalismo desabrido, �s quais se juntam os riscos de
manipula��es gen�ticas dementes, etc. E n�o ser�o os t�cnicos, os economistas e os
cientistas que ir�o fixar normas �tico-pol�ticas e conjurar o caos. Caos a que seremos
levados se os homens pol�ticos continuarem se omitindo por ignor�ncia e por car�ncia de
civismo.

Estado - Como v� a evolu��o do Brasil e da Am�rica Latina neste cen�rio mundial de
incertezas?
Morin - Se o mundo se encaminhar para o confronto de barb�ries, a Am�rica Latina n�o
ficar� a salvo das conseq��ncias disso. Nos momentos de crise, os povos costumam se
voltar para si e para seus vizinhos e tratar de se amparar reciprocamente. Tudo o que
espero, neste quadro de amea�as e incertezas - e tor�amos para que as previs�es mais
sombrias n�o se concretizem -, � que os latino-americanos, rompendo as barreiras
geogr�ficas, se conhe�am melhor, colaborem mais entre si na constru��o do continente
que lhes pertence.
Imagino o advento de uma federa��o continental, como a que se esbo�a na Europa,
mas nunca nos termos da concebida por Bol�var. Bol�var s� pensou na uni�o e na
liberdade dos colonos brancos, seu projeto n�o incorporava o mundo ind�gena, pr�-
colombiano. Pois o Brasil tem papel decisivo a desempenhar nessa constru��o comum,
visto a for�a civilizadora fenomenal engendrada pela sua heran�a cultural mesti�a,
caldeando os valores amer�ndios com os da Europa, �frica e �sia.

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