A Complexidade e a Empresa
Edgar Morin
Imaginemos uma tape�aria contempor�nea. Ela comporta fios de linho, seda, algod�o, l�,
de cores variadas. Para conhec�-la, seria interessante conhecer as leis e princ�pios
relativos a cada uma dessas esp�cies de fio. Contudo, a soma dos conhecimentos sobre
cada tipo de fio que comp�e a tape�aria� � insuficiente para conhecer essa nova realidade
que � o tecido (ou seja, as qualidades e propriedades dessa tessitura). � tamb�m incapaz
de nos auxiliar no conhecimento de sua forma e configura��o.

A primeira etapa da complexidade indica que conhecimentos simples n�o ajudam a
conhecer as propriedades do conjunto. Trata-se de uma constata��o banal, que no
entanto tem consequ�ncias n�o banais: a tape�aria � mais do que a soma dos fios que a
constituem. O todo � mais do que a soma de suas partes.

A segunda� etapa da complexidade revela que o fato de existir uma tape�aria faz com que
as qualidades desse ou daquele fio n�o possam, todas elas, expressar-se em sua
plenitude, pois est�o inibidas ou virtualizadas. Assim, o todo � menor do que a soma de
suas partes.

A terceira etapa da complexidade � a mais dif�cil de entender por nossa estrutura mental.
Ela diz que o todo � ao mesmo tempo maior e menor do que a soma de suas partes.

Na tape�aria, como nas organiza��es, os fios n�o est�o dispostos ao acaso. Est�o
organizados em fun��o da talagar�a, isto �, de uma unidade sint�tica na qual cada parte
contribui para o conjunto. A tape�aria � um fen�meno que pode ser percebido e
conhecido, mas n�o pode ser explicado por nenhuma lei simples.

Tr�s causalidades
Uma organiza��o como a empresa est� situada num mercado. Produz objetos ou servi�os
� coisas que saem dela e entram no universo do consumo. Mas limitar-se a uma vis�o
heteroprodutiva da empresa seria insuficiente, pois ao produzir coisas e servi�os ela ao
mesmo tempo se autoproduz. Isso significa que produz todos os elementos necess�rios �
sua sobreviv�ncia e organiza��o. Ao organizar a produ��o de objetos e servi�os a
empresa se auto-organiza, se automant�m, se auto-repara se necess�rio, e, se as coisas
n�o v�o bem, autodesenvolve-se enquanto desenvolve sua produ��o.

Desse modo, ao produzir produtos independentes do produtor, a empresa desenvolve um
processo no qual o produtor produz a si mesmo. De um lado, sua autoprodu��o �
necess�ria � produ��o de objetos; de outra parte, a produ��o de objetos � necess�ria �
sua pr�pria produ��o.

A complexidade surge nesse enunciado: aquele que produz coisas produz ao mesmo tempo
a si pr�prio; o produtor � o seu pr�prio produto. Tal enunciado suscita um problema de
causalidade.

Primeiro �ngulo: causalidade linear. Se com tal mat�ria prima, aplicando tal processo de
transforma��o � produzido tal objeto de consumo, a causalidade � linear: tal causa gera
tais efeitos.

Segundo �ngulo: causalidade circular ou retroativa. Uma empresa precisa ser regulada.
Deve produzir em fun��o das necessidades externas, de sua for�a de trabalho e
capacidades internas de energia. H� mais ou menos 40 anos que se sabe, gra�as �
cibern�tica, que o efeito (boas ou m�s vendas) pode retroagir para estimular ou
desestimular a produ��o de objetos e servi�os por uma empresa.

Terceiro �ngulo: causalidade recursiva. No processo recursivo, os efeitos e os produtos
s�o necess�rios ao processo que os produz. O produto � o produto daquilo que o produz.

Essas tr�s causalidades s�o encontradas em todos os n�veis das organiza��es complexas.
A sociedade, por exemplo, � produzida pela intera��es dos indiv�duos que a constituem.
Na condi��o de um todo organizado e� organizador, a pr�pria sociedade retroage para
produzir os indiv�duos por meio da educa��o, linguagem e escola. Assim, em suas
intera��es os indiv�duos produzem a sociedade, e esta produz os indiv�duos que a
produzem. Tudo isso acontece num circuito em espiral, por meio da evolu��o hist�rica.

Para compreender a sociedade dessa maneira, � necess�ria uma mudan�a bastante
profunda em nossas estruturas mentais. Se tal mudan�a n�o ocorrer, existe o risco de
caminharmos para a confus�o ou para a recusa dos problemas. N�o existem de um lado o
indiv�duo, do outro a sociedade; de uma parte a esp�cie, de outra os indiv�duos; de um
lado a empresa com seu organograma, programa de produ��o, avalia��es de mercado, e
de outra parte os seus problemas de rela��es humanas, de pessoal, de rela��es p�blicas.
Os dois processos s�o insepar�veis e interdependentes.

Da auto-organiza��o � auto-eco-organiza��o
Na condi��o de organismo vivo, a empresa se auto-organiza e se autoproduz. Ao mesmo
tempo, ela faz auto-eco-organiza��o e auto-eco-produ��o. Expliquemos esse conceito
complexo.

A empresa situa-se num meio exterior, o qual por sua vez faz parte de um sistema eco-
organizado ou ecossistema. Consideremos o exemplo das plantas e animais: seus
processos cronobiol�gicos conhecem a altern�ncia do dia e da noite e das esta��es do
ano. A ordem c�smica est� no interior da organiza��o das esp�cies vivas.

Vamos mais longe, com o exemplo de uma experi�ncia feita em 1951, no planet�rio de
Bremen com uma ave migradora, a toutinegra palradora. No planet�rio, fez-se desfilar,
diante desse p�ssaro que no inverno emigra para o vale do Nilo, a ab�bada celeste com as
constela��es desde o c�u da Alemanha at� o do Egito. No planet�rio, a toutinegra
continuou cantando sem parar at� que se colocou sob o c�u de Luxor. Desse modo, ela
tamb�m "computou" seu itiner�rio em fun��o de pontos celestes. Essa experi�ncia prova
que de certa forma o p�ssaro tinha o c�u em sua cabe�a.

N�s, humanos, conhecemos o mundo por meio das imagens que nossos sentidos
transmitem ao c�rebro. O mundo est� presente em nossa mente, a qual por sua vez est�
presente no mundo.

O princ�pio da auto-eco-organiza��o tem valor hologram�tico. Na imagem do holograma,
cada ponto inclui a quase totalidade da informa��o do todo. Do mesmo modo, o todo do
qual fazemos parte est� presente em nossa mente.

A vis�o simplificada diria que a parte est� contida no todo. A vis�o complexa diz que n�o
s� a parte est� no todo como este est� no interior das partes, que por sua vez est�
dentro do todo. Trata-se de algo diferente da concep��o confusa de que tudo est� em
tudo e vice-versa.

Isso � verdadeiro para cada c�lula do nosso organismo que cont�m a totalidade do c�digo
gen�tico do nosso corpo. � tamb�m verdadeiro para a� sociedade: desde a inf�ncia ela se
imprime como totalidade em nossa mente, por meio da educa��o familiar, escolar e
universit�ria.

Estamos diante de sistemas extremamente complexos, nos quais a parte est� no todo e
este est� nela. Isso � v�lido para a empresa, que tem suas normas de funcionamento e
dentro da qual atuam as leis de toda a sociedade.

Viver e lidar com a desordem
Uma empresa se auto-organiza no seu mercado. O mercado � um fen�meno ao mesmo
tempo ordenado, organizado e aleat�rio. � aleat�rio porque n�o existe absoluta certeza
sobre as� hip�teses e possibilidades de venda de produtos e servi�os, mesmo que existam
possibilidades, probabilidades, plausibilidades de que isso aconte�a. O mercado � uma
mistura de ordem e desordem.

Feliz ou infelizmente, o Universo � um coquetel de ordem, desordem e organiza��o.
Estamos num Universo no qual n�o � poss�vel afastar o imprevisto, o incerto, a desordem.
Devemos viver e lidar com a desordem.

E a ordem? Consiste em tudo aquilo que � repeti��o, const�ncia, invari�ncia, tudo o que
pode ser posto sob a �gide de uma rela��o altamente prov�vel, colocado sob a
depend�ncia de uma lei.

E a desordem? � tudo que representa irregularidade, com desvio em rela��o a uma
determinada estrutura; tudo o que � imprevis�vel e aleat�rio.

Num Universo de ordem pura n�o haveria inova��o, cria��o, evolu��o. N�o existiriam seres
vivos, inclusive humanos.

Da mesma forma, num Universo de desordem pura n�o seria poss�vel nenhum tipo de
exist�ncia, pois n�o haveria nenhum elemento de estabilidade para que nela se baseasse
uma organiza��o.

As organiza��es precisam de ordem e de desordem. Num Universo em que os sistemas
sofrem o aumento da desordem e tendem a se desintegrar, sua organiza��o permite que
eles captem, reprimam e utilizem a desordem.

Qualquer fen�meno f�sico, organizacional e vivo tende a degradar-se e a degenerar. A
decad�ncia e a desintegra��o constituem fen�menos normais.� Ou seja, n�o seria normal,
e sim inquietante, se as coisas n�o se modificassem com o tempo. N�o existe nenhuma
receita de equil�brio. A �nica forma de lutar contra a degenera��o � a regenera��o
constante, isto �, a aptid�o do conjunto da organiza��o para se� regenerar e reorganizar-
se enquanto enfrenta os processos de desintegra��o.

Estrat�gia, programa, organiza��o
Ordem, desordem, programa, estrat�gia!
A id�ia de estrat�gia � oposta � de programa. Um programa � uma sequ�ncia de a��es
predeterminadas, que deve funcionar nas ciscunst�ncias que permitem o seu
cumprimento. Se as circunst�ncias externas n�o forem favor�veis, o programa cessa ou
fracassa. A estrat�gia elabora um ou v�rios cen�rios. Desde o in�cio, h� uma prepara��o
para o novo ou inesperado, para integrar, modificar ou enriquecer a a��o.

� evidente que a vantagem do programa � proporcionar uma grande economia: com ele
n�o � preciso refletir, tudo se faz de modo autom�tico. Uma estrat�gia, pelo contr�rio, �
determinada levando-se em conta uma situa��o imprevista, elementos adversos e at�
advers�rios, uma situa��o que teve de se modificar em fun��o de informa��es fornecidas
durante a opera��o. Tem, portanto, grande mabeabilidade. Contudo, para que uma
estrat�gia possa ser conduzida por uma organiza��o, � necess�rio que tal organiza��o
n�o seja planejada para obedecer s� a programas. Ela deve ser capaz de lidar com
elementos que contribuam para a elabora��o e desenvolvimento de estrat�gias.

Por isso, creio que nosso modelo ideal de funcionalidade e racionalidade n�o s� � abstrato
mas prejudicial para os administradores e para o conjunto da sociedade. Esse modelo �
obviamente r�gido, e sabemos que tudo aquilo que � programado dificulta a estrat�gia.
Entretanto, � claro que numa organiza��o n�o se pode pretender que todos se tornem
estrategistas, pois isso levaria � total desordem. Por outro lado, em geral o problema da
rigidez e das possibilidades de flexibilidade e "adaptabilidade", n�o � considerado, o que
acaba favorecendo a esclerose e o fen�meno burocr�tico.

A burocracia � ambivalente. � racional porque aplica regras impessoais, v�lidas para todos
e garante a coes�o e a funcionalidade de uma organiza��o. Por outro lado, a pr�pria
burocracia pode ser criticada como um instrumento de decis�es que nem sempre s�o
racionais. Ela pode ser vista como um conjunto parasit�rio, no qual se desenvolve toda
uma s�rie de bloqueios e gargalos que a tornam um fen�meno tamb�m parasit�rio no
�mbito da sociedade.

Assim, pode-se considerar o problema da burocracia sob esse duplo �ngulo do parasit�rio
e do racional, e � de lamentar que o pensamento sociol�gico n�o tenha ultrapassado essa
alternativa. E n�o poderia super�-la, porque a quest�o da burocracia ou da administra��o
deve ser primeiramente posta em termos fundamentais no dom�nio da complexidade.

Na empresa, o v�cio da concep��o taylorista de trabalho foi ver o ser humano apenas
como uma m�quina f�sica. Num segundo momento, percebeu-se que ele � tamb�m
biol�gico. Adaptou-se ent�o o homem biol�gico ao seu trabalho e as condi��es do
trabalho a esse homem. Em seguida, quando se constatou que tamb�m existe um homem
psicol�gico � frustrado pela divis�o de tarefas � inventou-se o enriquecimento das
tarefas. A evolu��o do trabalho � ilustrativa da passagem da unidimensionalidade para a
multidimensionalidade. Ainda estamos no come�o desse processo.

O "jogo" � um fator de desordem, mas tamb�m de flexibilidade. O desejo de impor uma
ordem implac�vel dentro de uma empresa n�o � eficiente. Em caso de danos, acidentes,
acontecimentos imprevistos, a exig�ncia da cessa��o imediata da atividade de setores e
m�quinas vai contra a efici�ncia. � necess�rio que uma parte da iniciativa seja delegada a
cada escal�o e a cada indiv�duo.

Rela��es complementares e antag�nicas
No �mbito de uma organiza��o, sociedade ou empresa, as rela��es s�o ao mesmo tempo
complementares e antag�nicas, e esse fen�meno se baseia numa extraordin�ria
ambiguidade. Daniel Moth�, antigo oper�rio da Renault, descreve como em sua oficina uma
associa��o informal, secreta, clandestina, manifestava a resist�ncia dos trabalhadores �
rigidez da organiza��o do trabalho, permitindo que eles ganhassem um pouco de
autonomia e liberdade. Essa organiza��o secreta criava, pois, uma organiza��o flex�vel do
trabalho. Sua resist�ncia era colaborativa, pois foi por causa dela que as coisas
funcionaram.

Esse exemplo pode ser estendido a muitos outros dom�nios, como o campo de
concentra��o de Buchenwald, criado em 1933 para prisioneiros alem�es, pol�ticos e
comuns. No come�o, os presos "comuns" tinham o posto de Kapos e menos
responsabilidades na contabilidade e na cozinha. A seguir, os presos "pol�ticos" declararam
que poderiam melhorar o funcionamento do campo sem depreda��es e desperd�cios, e por
isso os SS confiaram aos pol�ticos comunistas o cuidado da organiza��o. Desse modo, uma
organiza��o comunista colaborou com os SS, ao mesmo tempo que lutava contra eles. A
vit�ria dos aliados e a liberta��o do campo deram a essa colabora��o o claro sentido de
uma resist�ncia.

Vejamos o caso da economia sovi�tica at� 1930. Em princ�pio, ela era regida por meio de
um planejamento contralizado hiper-r�gido, hiperminucioso, etc. O car�ter extremamente
restrito, programado e autorit�rio desse planejamento tornou-o inaplic�vel na pr�tica.
Contudo ele prosseguiu mediante muito desleixo, porque todos os n�veis procuravam iludir-
se a seu respeito e desembara�ar-se dele. Um exemplo: os diretores das empresas
trocavam telefonemas para intercambiar produtos, o que significa que na c�pula havia
ordens r�gidas, enquanto que nas bases o que existia era uma anarquia organizadora
espont�nea. Os frequentes casos de absente�smo s�o ao mesmo tempo necess�rios, pois
as condi��es de trabalho exigem que as pessoas faltem � procura de "bicos" que reforcem
seus sal�rios. Assim, essa anarquia espont�nea mostrou a resist�ncia e a colabora��o da
popula��o em rela��o a um sistema que a oprimia.

Em outros termos, a economia da antiga Uni�o Sovi�tica funcionou gra�as a essa resposta
da anarquia espont�nea de cada um em rela��o �s ordens da c�pula. Ou seja, � preciso
que haja elementos de coer��o para que as coisas funcionem. Mas elas n�o funcionam s�
porque existe a pol�tica, etc.; funcionam tamb�m porque existe de fato uma certa
toler�ncia em rela��o ao que acontece na base. � essa toler�ncia que garantiu o efetivo
funcionamento de uma m�quina absurda, que n�o poderia funcionar de outra maneira.

Na verdade o sistema n�o desabou. Foi abandonado por causa de uma decis�o pol�tica,
dado o seu desregramento, fraco� desempenho e aus�ncia de criatividade. Enquanto o
sistema durou, foi a anarquia espont�nea que fez funcionar o planejamento programado.
Foi a resist�ncia no seio da m�quina que a� fez funcionar.

A desordem � a resposta inevit�vel, necess�ria e com freq��ncia at� mesmo fertilizadora,
ao car�ter esclerosado, esquem�tico, abstrato e simplificador da ordem.

Surge ent�o uma quest�o hist�rica global: nas empresas, como integrar as liberdades e
desordens que podem suscitar a adaptabilidade e a criatividade, mas que podem tamb�m
trazer a desintegra��o e a morte?

A necessidade das solidariedades vividas
Desse modo, h� uma ambiguidade de luta, resist�ncia, colabora��o, antagonismo e
complementariedade necess�ria � complexidade organizacional. Surge ent�o o problema do
excesso de complexidade, o qual � definitivamente desestruturante. De um modo geral,
pode-se dizer que quanto mais uma organiza��o � complexa, mais ela tolera a desordem.
Essa condi��o lhe proporciona vitalidade, porque os indiv�duos s�o capazes de tomar
iniciativas para regular esse ou aquele problema sem ter de consultar a hierarquia central.

Contudo, um excesso de complexidade � definitivamente desestruturante. No limite, uma
organiza��o que s� tivesse liberdades e muito pouca ordem se desintegraria, a menos que
existisse, como complemento dessa liberdade, uma profunda solidariedade entre seus
membros. A solidariedade vivida � a �nica circunst�ncia que permite o aumento da
complexidade. Por fim, as redes informais, as resist�ncias colaboradoras, as autonomias,
as desordens, s�o ingredientes necess�rios � vitalidade das empresas. Tudo isso pode
abrir um mundo de reflex�es...

Assim, a atomiza��o de nossa sociedade requer novas solidariedades vividas de modo
espont�neo, e n�o apenas as impostas por lei, como a Seguridade Social.


(Este texto faz parte do tomo The Generation of Scientific, Administrative Knowledge,
editado por Michel Audet e Jean-Louis Maloin, Presses de l'Universit� Laval, Quebec, 1986,
pp. 135-154).

EDGAR MORIN, soci�logo, fil�sofo, historiador, � diretor de pesquisas do� Centre National
de la Recherche Scientifique, em Paris, e presidente da Association pour la Pens�e
Complexe, tamb�m sediada em Paris.

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