Latinidades
Edgar Morin
Este texto corresponde � transcri��o de palestra dada pelo autor na Mostra Sesc de
Artes � Latinidades, em 29 de agosto de 2003, no SESC da Av. Paulista, S�o Paulo.


Retomando o t�tulo das palestras do ciclo da Mostra de Artes realizada pelo SESC,
encontramos o termo "latinidade" no plural: "latinidades". Diante disso, sabemos, nas
latinidades existe a latinidade, e realmente � importante estudar esse conceito a partir da
origem, ou seja, Roma.

Existem duas faces complementares daquilo que chamaremos de "romanidade". A primeira
� hist�rica e surge das conquistas extremamente b�rbaras, tomando-se como ponto de
partida a cidade de Roma e subjugando de forma implac�vel e destrutiva a It�lia e o
mundo mediterr�neo. Os estudiosos da hist�ria antiga recordam-se da destrui��o total de
Cartago e sua grande civiliza��o p�nica; o saque e a destrui��o total da grande cidade
grega Corinto; o cerco � Num�ncia, povoado espanhol, com sua v� resist�ncia e, por fim,
seu exterm�nio. Mesmo no pr�prio mundo romano, aconteceram ferozes repress�es �s
revoltas de escravos, como a de Esp�rtaco, e a destrui��o da rep�blica e da democracia,
com o surgimento de um imp�rio e seu "divino" imperador.

Em continua��o, defrontamo-nos com uma segunda � e paradoxal � face dessa
latinidade. Da conquista feroz da qual falamos emerge n�o somente um imp�rio pac�fico,
mas tamb�m civilizador. Uma civiliza��o com virtudes ao mesmo tempo integradoras e
universalistas.
A primeira integra��o foi a dos gregos, assim que Roma conquistou a Gr�cia. Em ve�culos
de transporte, nas carruagens triunfantes dos vencedores, chegaram escravos gregos e
com eles a cultura grega foi progressivamente difundida no imp�rio. E, como voc�s sabem,
o grego tornou-se o idioma do imp�rio bizantino ap�s a desintegra��o de sua por��o
ocidental, o que tornou verdadeiro o ad�gio latino: "A Gr�cia vencida venceu seu b�rbaro
vencedor".

Qual a contribui��o da Gr�cia vencida? Um pensamento universal criado e desenvolvido
por seus fil�sofos e, principalmente, a c�lebre m�xima humanista de Prot�goras : "O
homem � a medida de todas as coisas", que encontra eco em Ter�ncio, autor latino de
teatro totalmente influenciado pela cultura grega. Em uma de suas obras encontramos a
c�lebre frase: "Homo sum: humani nihil a me alienum puto", ou seja: "Sou homem: nada do
que � humano me � estranho". � claro que essa universalidade e esse humanismo s�o
extremamente limitados, e deles n�o participam escravos.

Na Gr�cia, na Atenas da grande filosofia, Arist�teles dizia: "O escravo � uma ferramenta
animada", isto �, um objeto e n�o um ser humano; portanto, tratava-se da exclus�o dos
n�o-cidad�os. Sim, esse universalismo � potencial como a democracia nascida em Atenas,
que se destina exclusivamente aos cidad�os. Por�m, a id�ia democr�tica carrega em si o
potencial da universaliza��o, fato que se tornou a tarefa da democracia moderna.

Contamos ent�o com esse humanismo universal, que ir� permear a cultura latina, e a
seguir teremos uma integra��o, que eu chamaria de cidad� e pol�tica dos habitantes dos
pa�ses conquistados por Roma. Refiro-me ao �dito do imperador Caracalla, no s�culo tr�s,
que estende a cidadania romana a todos os habitantes do imp�rio. A partir desse
momento, o imp�rio romano n�o � mais t�o somente dos povos da It�lia ou de Roma, mas
tamb�m dos espanh�is, dos africanos do norte � como santo Agostinho, que era um
b�rbere �, que assim se tornaram cidad�os romanos de pleno direito.
� incr�vel que, enquanto observamos ainda nos dias de hoje a tend�ncia de domina��o de
uma etnia sobre outras, no imp�rio romano tenha havido uma tend�ncia absolutamente
n�o-racial, n�o-racista. Existiram imperadores que n�o eram romanos, e nem mesmo
italianos.

Nessas condi��es, constituiu-se de certa forma a unidade das diferen�as; as toler�ncias
religiosas relativas � Antig�idade pag�. Deuses estrangeiros foram adotados pelos
romanos: Os�ris o deus eg�pcio, como Orfeu, o deus grego que morre e renasce tal qual
Os�ris; e por fim a integra��o da mensagem de Jesus que, uma vez concretizada,
desintegrar� todas as outras com o seu monop�lio da verdade.

De qualquer modo, quero dizer que � real essa aceita��o de outras cren�as, pois aceitar
os deuses dos outros povos significa reconhec�-los. Eliminar os deuses dos outros povos,
como o fizeram por exemplo as conquistas espanhola e portuguesa, � negar de fato a
exist�ncia dos demais.

O terceiro aspecto da latinidade � a integra��o do Cristianismo a partir de um momento
extremamente importante � o encontro do juda�smo de Jesus com a cultura grega, com a
cultura greco-latina. Essa extraordin�ria circunst�ncia hist�rica aconteceu a Paulo, o
patrono desta cidade de S�o Paulo.

S�o Paulo, que na realidade se chamava Saulo, era judeu, fariseu, anticrist�o, e perseguiu
os primeiros crist�os. Como sabem, ele viu um clar�o, teve um �xtase � h� um belo
quadro de Caravaggio numa igreja em Roma, na Piazza del Popolo no qual vemos Paulo
ca�do do cavalo, fulminado, tombado ao ch�o � ao ter uma revela��o de Jesus, que lhe
disse: "Paulo, ou melhor, Saulo, porque me persegues?".

Como � do conhecimento de todos, essa convers�o de Saulo ter� imensas conseq��ncias
porque Paulo � Saulo que se tornou Paulo � enunciar� esta id�ia b�sica: n�o h� mais
judeus e n�o h� mais gentios (a palavra "gentio" significando todos os outros povos, todas
as outras na��es), existe uma s� humanidade.

Esse pensamento e mensagem de Jesus, potencialmente universalista, torna-se de fato
universal; tamb�m tem suas limita��es, j� que o cristianismo, como sabem, n�o aboliu a
escravid�o: contribuiu para sua aboli��o.

Durante dois ou tr�s s�culos, houve uma longa incuba��o da mensagem crist� em todo o
imp�rio romano e em todas as camadas da sociedade. At� que, com a convers�o do
imperador Constantino, ela se torna n�o somente a religi�o de imp�rio, mas tamb�m a
�nica religi�o oficial. Nesse momento o cristianismo integra a romanidade, integrando a
latinidade que o havia integrado anteriormente.

Existe um duplo aspecto nessa integra��o: a integra��o de uma mensagem de abertura,
de amor, como a do serm�o da montanha, e outro aspecto: a intoler�ncia de uma religi�o
que se declara a exclusiva detentora da verdade, que possui o monop�lio da verdade e
que eliminar� todas as outras de forma impiedosa.

Sabemos que essa tend�ncia do monote�smo � ali�s, quero lembrar-lhes que este � de
origem eg�pcia, pois o Fara� Akenaton foi o primeiro a adorar um deus �nico � tem
aspectos que remetem ao universal. � dirigida a todos os seres humanos e � em certos
momentos hist�ricos, infelizmente demasiadamente numerosos � tamb�m tem aspectos
extremamente intolerantes e fan�ticos. Como ocorreu nas incessantes guerras religiosas
na Europa, e com o Isl�, tamb�m possuidor do mesmo car�ter monopolista do monote�smo.

Percebem ent�o que as guerras religiosas s�o um monop�lio ou uma caracter�stica
espec�fica do nosso mundo ocidental e mediterr�neo, enquanto que na China e no Jap�o,
por exemplo, notamos a pluralidade das religi�es. Uma mesma pessoa pode tanto professar
o culto dos ancestrais, o culto Xinto�sta ou o culto Budista. Finalmente, essa quest�o �
n�o somente o grande �xito da latinidade em si, como de todas as latinidades.

E o que s�o as latinidades?

A latinidade surge a partir da desintegra��o do imp�rio romano do Ocidente, isto �, com a
chegada dos povos b�rbaros que integram uma parte da civiliza��o e da l�ngua latina. A
l�ngua latina transforma-se � como acontece com todas as l�nguas na Hist�ria �, dando
origem �s l�nguas nacionais a partir das linguagens populares, j� que os letrados
continuam usando o latim cl�ssico, o da igreja. Contudo, essas l�nguas nacionais det�m
um cunho latino, como naturalmente t�m o italiano, o espanhol, o portugu�s, o franc�s, o
romeno, etc.

Presenciamos ent�o o surgimento das latinidades, das l�nguas mesti�as, evidentemente
marcadas durante a Idade M�dia pelo monop�lio teol�gico da religi�o. Por�m, no �mago da
latinidade ocorrer� o que denominamos de Renascimento, ou seja, a ressurrei��o da
heran�a grega, que j� houvera permeado a latinidade do imp�rio romano. Essa
ressurrei��o tem in�cio na It�lia, e faz brotar algo que romper� o isolamento religioso, j�
que representa o despontar de um pensamento n�o-religioso, de um pensamento laico,
aut�nomo, com ou sem Deus.

Essa corrente humanista surge com muita for�a na It�lia, com Pico Della Mirandola,
Giordano Bruno � que foi queimado em Roma, como sabemos �, com Leonardo da Vinci�
e, ao mesmo tempo, com o advento da tecnologia, da ci�ncia, da filosofia, etc.

Todavia, n�o existe somente essa corrente italiana, que ali�s se propagar� pela Europa
Ocidental e influenciar� principalmente Erasmo. H� uma outra corrente subterr�nea, muito
pouco conhecida, que podemos denominar de corrente marrana: a dos convertidos. S�o
os judeus convertidos ao catolicismo pela for�a, por vontade pr�pria, ou mesmo pelo
medo. Entre eles, h� certamente alguns que acabaram esquecendo suas origens e se
tornaram cat�licos; outros permaneceram judeus, secreta e clandestinamente, mantendo
uma apar�ncia cat�lica concomitante. Por�m, h� outra categoria, bastante minorit�ria,
para quem o confronto, o choque entre as religi�es crist� e hebraica fez emergir algo
novo, que transcender� ambas.

Para dar-lhes um exemplo, o mais belo � o pensamento de Espinosa, fil�sofo de origem
judaica que naquele tempo promoveu essa revolu��o mental pr�pria do mundo moderno:
eliminou a id�ia de um Deus exterior ao mundo que criou o universo tal qual um arquiteto.
Elimina essa id�ia, que naquela �poca permanece muito arraigada em Descartes e em
Newton, situando a subst�ncia criadora no �mago da pr�pria natureza.

A f�rmula de Espinosa �: "Deus, isto �, a natureza". N�o podemos diz�-lo com mais
�nfase. Esse ser� o problema fundamental: o fato de que a cria��o, as id�ias, a
humanidade, a evolu��o, originam-se do pr�prio mundo, que permanentemente se cria e
recria.

Como j� haviam percebido os inquisidores, perseguidores dos marranos, o marranismo era
uma fonte de ceticismo e racionalidade. O exemplo mais claro � o de Michel de Montaigne
cuja hereditariedade � toda de origem marrana, isto � judia, possuidor desses conceitos
extraordin�rios para a sua �poca de guerras religiosas: o ceticismo e a relatividade. Foi
Montaigne o primeiro a dizer, quando da conquista da Am�rica: "Chamamos de b�rbaros os
que pertencem a uma civiliza��o�distinta da nossa". � a ressurrei��o da mensagem
universal greco-latina em um mundo p�s-crist�o. Lendo os ensaios de Montaigne,
encontramos in�meras refer�ncias aos gregos, aos poetas gregos e latinos, por�m
nenhuma men��o � B�blia ou ao Evangelho.

Podemos, portanto, dizer que a filosofia e a ci�ncia moderna tiveram origem no
Renascimento, e que a partir desse momento a latinidade n�o p�de mais se confundir com
a cristandade, que se estabelece de maneira mais ampla na Europa.

Sob a influ�ncia desse pensamento � do Renascimento e do catolicismo � ocorre ent�o
na Europa o que chamar�amos de dial�gica, ou seja, uma rela��o ao mesmo tempo
complementar e antagonista entre a religi�o e a raz�o, entre a f� e a d�vida. Gra�as a ela
podemos reconhecer os limites da raz�o. Nela podemos, como demonstra Pascal � e isso
� muito importante e atual �, concluir que n�o existe nenhuma prova l�gica nem emp�rica
da exist�ncia de Deus.

O que diz Pascal? Diz: "E preciso apostar". Eis o grande tema da Aposta de Pascal:
"Doravante, devemos apostar". Seja em Deus ou, de acordo com nossos princ�pios, no
bem, no aprimoramento da humanidade, em um mundo melhor: devemos sempre apostar.
Nunca teremos certeza de �xito em nossas iniciativas, e eis aqui tamb�m essa s�lida id�ia
em um pa�s de l�ngua latina, a Fran�a, o que � de suma import�ncia.

N�o devemos esquecer que a latinidade cont�m duplamente o helenismo � helenismo
significando a heran�a grega, j� que os gregos s�o os helenos. Existe a heran�a grega
encontrada na latinidade do imp�rio romano, e a heran�a grega encontrada na Europa
latina e de maneira mais extensa na Europa moderna e, por fim, nos tempos modernos.

Deparamo-nos, portanto, com uma nova aventura para a palavra latinidade. Da mesma
forma como Roma conquistou de forma b�rbara o mundo antigo, a Europa conquistou a
Am�rica, a Am�rica Latina com a pavorosa destrui��o das civiliza��es Asteca e Inca, com
uma subjuga��o maci�a. Nessa conquista b�rbara, podemos observar a rapacidade dos
conquistadores e a imposi��o imperiosa da f� cat�lica.

Concomitante e paralelamente ao aspecto b�rbaro, assistimos � introdu��o do portugu�s,
do espanhol e de novas latinidades. � nessas novas latinidades que se inicia o processo
de emancipa��o. Primeiramente a emancipa��o dos criollos, isto �, dos colonos desses
pa�ses ao se libertarem da coroa espanhola e portuguesa, e com essa emancipa��o, a dos
escravos. No Brasil do s�culo 19, e que ainda n�o terminou... que est� muito longe de
terminar, se pensarmos em pa�ses como o Peru, a Bol�via e o pr�prio Brasil, com o
problema dos ind�genas da Amaz�nia e de outras regi�es.

Por�m, assim mesmo contamos com um processo que chamarei de civilizador: a
mesti�agem, que contribui para a integra��o e emancipa��o dentro de um novo complexo
nacional e civilizador. Realmente, embora o processo n�o esteja acabado, o exemplo mais
marcante de uma na��o que criou uma civiliza��o pela mesti�agem � sem d�vida o do
Brasil, exemplo de mesti�agem civilizadora e criadora.

Da mesma forma que na Europa n�o existe mais, desde o Renascimento, uma latinidade,
mas sim latinidades, na Am�rica Latina tamb�m existem latinidades. E o termo latinidade
torna-se um componente ling��stico e cultural das civiliza��es mesti�as, e n�o a ess�ncia
dessas civiliza��es. N�o podemos reduzir todos estes pa�ses � simples latinidade, nem
mesmo a Argentina, que � o pa�s mais europeu da Am�rica Latina. Em outras palavras, o
termo "latino" deve ser considerado um adjetivo e n�o um substantivo.

A latinidade � um tra�o que caracteriza os povos, as na��es da Am�rica Latina. Portanto,
podemos dizer que as latinidades se enriqueceram e continuar�o a se enriquecer pela
mesti�agem e pelas diversidades no seio das unidades nacionais. Digo "ir�o se enriquecer",
porque nos encontramos num processo de despertar das realidades e das culturas
ind�genas em pa�ses vizinhos, como o Peru, a Bol�via, o Equador; o despertar das culturas
Qu�chua, Aymara. Assistimos a esse impulso ind�gena muito forte, que dever� nos levar a
uma nova ou a novas simbioses.

Tendo dito isto e nessas novas condi��es, devemos examinar um novo aspecto, aquele
pr�prio �s latinidades. Qual � ele? Primeiramente, quando examinamos os mapas
geogr�ficos, percebemos que as latinidades s�o do Sul: o Sul da Am�rica � e
naturalmente o M�xico, culturalmente parte integrante da Am�rica Latina, situado ao sul
dos Estados Unidos � e a Europa do sul: Portugal, Espanha, Fran�a, It�lia, Mediterr�neo,
ele pr�prio localizado no sul da Europa. Portanto, existe essa caracter�stica que � o Sul.

Hoje � e isso ocorre j� faz alguns anos �, n�o falamos mais da oposi��o Leste / Oeste.
Ap�s a queda do imp�rio sovi�tico, falamos do Norte e do Sul. Dizemos: o Norte � rico, o
Sul � pobre; o Norte � desenvolvido, o Sul � subdesenvolvido; o Norte � muito t�cnico,
industrial, o sul � principalmente rural, etc. De alguma forma, o desenvolvimento e a
riqueza significam Norte, o subdesenvolvimento e a pobreza significam Sul. Por�m, na
realidade as coisas s�o muito mais complexas.

Por que? Porque o Norte det�m a hegemonia da t�cnica, da ind�stria, do capitalismo, que
tamb�m � a hegemonia do c�lculo, do economicismo. Isso significa que o pensamento do
Norte tende sempre mais a se concentrar no c�lculo, na economia � que por sua vez
tamb�m � c�lculo �, e que todo o conte�do humano n�o se resume ao mero c�lculo.

O sofrimento n�o pode ser calculado, assim como tamb�m o amor. Mesmo que se invente
uma unidade de medida para o amor � que chamar�amos de "Cupido" �, nunca far�amos
uma declara��o de amor a uma jovem dizendo-lhe: "Sinto trezentos Cupidos por voc�".
Absolutamente n�o! Nada disso � quantific�vel. Mas a tend�ncia do Norte � reduzir tudo
ao c�lculo: reduzir a pol�tica � economia, ao crescimento, � renda bruta. S�o meras
no��es estat�sticas formais. Em outras palavras, � a hegemonia da quantidade em
detrimento da qualidade, das qualidades, tendo � frente a qualidade de vida.

No entanto, o atraso econ�mico do Sul comporta a salvaguarda dos valores humanos n�o
redut�veis a quantidades nem a moedas. S�o os valores de conv�vio, de hospitalidade,
valores de qualidade de vida. De resto, o Norte sente uma necessidade crescente desses
valores. Desde o s�culo 19, o Norte busca o Sul: o Norte germ�nico, preso num mundo
fechado, apelava ao Mediterr�neo por meio de seus poetas. Em especial Goethe, que,
referindo-se � It�lia. diz: "Conheces o pa�s onde floresce a laranjeira?" Pode-se encontrar
esse apelo ao Mediterr�neo tamb�m em H�lderlin.

E, hoje, na Europa, v�-se uma grande massa de veranistas alem�es que acorrem para as
praias do Mediterr�neo, para as ilhas gregas, para o Sul, para o sol, que buscam algo que
n�o lhes � oferecido por sua cultura e sua civiliza��o. Ali�s, por que ser� que a pizza
difundiu-se pelo Norte e pelo mundo inteiro? Ela � um s�mbolo daquilo que o Sul pode nos
trazer; alguma coisa que n�o pode ser encontrada no chucrute nem na salsicha.

Claro que n�o se deve denegrir o Norte. � preciso dizer tamb�m que o Sul, durante muito
tempo, manteve certas desigualdades muito marcantes, principalmente a desigualdade do
estatuto da mulher. Na Espanha, ainda h� trinta anos, uma mulher n�o podia entrar num
bar desacompanhada. A chegada das mulheres ao mundo do trabalho, ao mundo externo,
� recente. A defesa dos direitos da mulher come�ou incontestavelmente no Norte, e por
essa raz�o, � preciso n�o somente pregar, como eu fa�o, a resist�ncia do Sul, mas
tamb�m a simbiose civilizadora entre o que h� de importante e �til no Norte com o que
decididamente deve ser conservado no Sul.

Nessa simbiose, vemos o que a latinidade pode trazer: uma fonte de universalidade e
humanismo em que ela mesma pode se transformar, acrescentando �s reivindica��es
locais, particulares e singulares, o elemento de universalidade indispens�vel.

Quando, num primeiro momento, houve resist�ncia � globaliza��o econ�mica, e alguns
tendiam a dizer que dever�amos nos fechar em nossos pa�ses � chegou-se a ver essa
posi��o � houve tamb�m uma outra mensagem, trazida por Jos� Bov�, um homem da
latinidade e pastor franc�s, que disse: "O mundo n�o � uma mercadoria". Isso quer dizer
que podemos aceitar uma civiliza��o global, por�m com suas diversidades. N�o queremos
nos fechar. � evidente que se deva respeitar os valores de cada cultura. Nesse ponto,
reaparece a quest�o do Sul.

Pensadores negros de express�o francesa, como Aim� C�saire, martiniqu�s, ou como
L�opold S�dar Senghor, africano senegal�s, s�o pensadores universais, sem abandonar o
pensamento da negritude, das qualidades do negro, do black is beautiful.

Para uma simbiose criativa, para uma civiliza��o planet�ria, o papel da latinidade �, a meu
ver, o de ser a porta-voz ao mesmo tempo do Sul e do universal. Mas para isso � preciso
ultrapassar a no��o de desenvolvimento. Esta, na minha opini�o, � uma no��o totalmente
subdesenvolvida, por tratar-se de um conceito t�cnico e econ�mico, que o Norte
ocidental quer impor ao mundo propondo-se como modelo. Como se a t�cnica e o capital
fossem locomotivas capazes de puxar um trem com a democracia, o humanismo e o
aperfei�oamento do destino humano. Como se a vis�o de que a pobreza se mede apenas
pelas estat�sticas e pelo PIB, e n�o por tra�os humanos como a humilha��o, como o fato
de n�o dispor de medicamentos ou de acesso �s fontes de informa��o.

Em outras palavras, a medida puramente quantitativa da pobreza � um erro. Podemos
considerar paup�rrimos os camponeses que vivem numa economia de subsist�ncia, numa
policultura, produzindo eles pr�prios o que necessitam para viver. Mas isso pode ser falso.
Esses mesmos camponeses, uma vez lan�ados nas habita��es paup�rrimas das periferias
dos grandes centros, n�o possuem nenhum recurso, vivendo de pequenos trabalhos,
numa verdadeira mis�ria.

Em suma, � preciso repensar essa id�ia de desenvolvimento. E a id�ia de
subdesenvolvimento, a meu ver, � abjeta, porque nos faz ver os subdesenvolvidos como
aqueles que nada conhecem a n�o ser supersti��es. Na realidade, chamamos de
subdesenvolvidos a povos que possuem culturas milenares. Os �ndios da Amaz�nia, por
exemplo, possuem tesouros em conhecimentos medicinais sobre as plantas, sobre os
animais. Esses povos t�m uma sabedoria e uma cultura oral de enorme riqueza. Na minha
opini�o, � terr�vel pensar que tudo isso nada representa, e que devemos dar-lhes pura e
simplesmente o alfabeto e as id�ias abstratas. � preciso ir al�m desse conceito de
desenvolvimento.

N�s, europeus, que nos consideramos desenvolvidos, percebemos que nossa civiliza��o
traz uma pobreza moral, traz o isolamento no egocentrismo e toda uma s�rie de problemas
at� ent�o inexistentes: a polui��o urbana, a degrada��o da biosfera, o desencadeamento
das armas nucleares. Caminhamos, c�leres, para um impasse. E dizemos aos demais pa�ses
para seguirem esse caminho, quando seria preciso dizer que escolham um outro. Esse � o
problema fundamental.

Por isso, creio que o papel da latinidade poderia ser extremamente importante, podendo
integrar o que h� de positivo na id�ia de desenvolvimento, como o acesso aos
medicamentos, por exemplo. V�-se hoje, ainda, as ind�strias farmac�uticas impondo
grandes dificuldades para reconhecer a pa�ses como o Brasil o direito de fabricar seus
medicamentos gen�ricos. Logo, precisamos de uma pol�tica da civiliza��o, da simbiose da
civiliza��o. Precisamos de uma pol�tica da humanidade, que se dirija �s necessidades mais
prementes, mais fundamentais para nossa humanidade, para o nosso planeta.

Sabemos que uma pol�tica de civiliza��o n�o pode limitar-se a uma luta militar contra o
terrorismo, porque a pr�pria luta continua, desenvolve a viol�ncia e, desenvolve um outro
terrorismo � o terrorismo de Estado � de extrema brutalidade. A pol�tica da civiliza��o
deve lutar contra a viol�ncia, e n�o pela simples repress�o; mas sim por meio da mudan�a
das condi��es humilhantes e de depend�ncia existentes no mundo atual.

Entretanto, como realizar essa regenera��o da humanidade, para salv�-la da cat�strofe
para a qual ela se dirige? Muitas vezes eu disse que a nave espacial Terra era
impulsionada por quatro motores: o motor ci�ncia, o motor t�cnica, o motor economia e o
motor lucro; mas disse tamb�m que n�o havia piloto, e que os passageiros da nave n�o
se entendem uns aos outros.

Nessas condi��es, o que fazer? � um trabalho de f�lego. � preciso conscientiza��o.
Quando tivermos consci�ncia de que estamos caminhando em dire��o a algo de terr�vel, a
rea��o surgir� e, talvez, possamos salvar o mundo... Mas j� � beira da cat�strofe! Voc�s
devem conhecer as palavras de H�lderlin, aqueles versos de seu poema � Gr�cia, chamado
Patmos, no qual ele diz: "Onde h� perigo / h� tamb�m salva��o".

E penso que � a consci�ncia que pode fazer isso. Para entendermos o que pode
acontecer, vou dar um exemplo mais l�gico. Acreditava-se que as c�lulas-matrizes �
aquelas que, no embri�o humano, t�m a capacidade de criar as c�lulas de todos os �rg�os
como o f�gado, o ba�o, o c�rebro, etc. � t�m a possibilidade universal, o que se chama
em linguagem biol�gica tutti potente. Acreditava-se que elas desaparecessem no adulto,
depois da cria��o dos �rg�os com c�lulas especializadas.

H� dois anos, por�m, uma descoberta muito importante, feita durante as pesquisas sobre
regenera��o de �rg�os e culturas de embri�es, mostrou que um ser adulto possui c�lulas-
matrizes em sua medula, em seu c�rebro, em seu corpo. Essas c�lulas matrizes est�o
apenas adormecidas. A quest�o a ser levantada pela medicina nos pr�ximos anos � como
despert�-las. J� foram feitas experi�ncias num camundongo com les�o card�aca e, gra�as
ao despertar dessas c�lulas, foi poss�vel reconstituir um cora��o normal.

Mas deixemos a met�fora e voltemos a falar da humanidade. Cada ser humano, e n�o
somente ele, mas cada coletividade humana tamb�m possui em si pot�ncias regeneradoras
que s�o como o equivalente das c�lulas-matrizes. Elas ficam adormecidas enquanto
estamos numa sociedade especializada, burocratizada, que busca exclusivamente a
quantidade e o lucro.

Quando h� uma crise, contudo, as c�lulas-matrizes podem despertar. � o que Karl Marx
chamava de homem gen�rico. Ele se referia � capacidade de cria��o e regenera��o
presentes no ser humano. N�s dispomos dessas capacidades. Elas est�o adormecidas. E
temos, entre essas c�lulas-matrizes, as matrizes do humanismo greco-latino. Assim, as
latinidades podem estar na vanguarda dos esfor�os para salvar a humanidade do desastre
para o qual ela corre.

Muito obrigado.
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