Edgar Morin, Um Virtuose que se Op�e
a Qualquer Interdi��o Intelectual
Entrevista de Edgar Morin a Alexis Lacroix
publicada originalmente no jornal Le Figaro,
em 21 de julho de 2002.

Traduzido por Nurimar Maria Falci
(e-mail: nurimarfalci@terra.com.br),
revis�o t�cnica de Edgard de Assis Carvalho
(e-mail: edgardcarvalho@terra.com.br).
Ante um futuro cada vez mais carregado de amea�as,
o soci�logo prop�e apostar na utopia.

P.: Com o aniquilamento das promessas progressistas, cada um de n�s pode ainda
ter alguma esperan�a no futuro?
Edgar Morin � Aquilo que foi aniquilado � a certeza do progresso hist�rico e a confian�a
no futuro. A ilus�o propriamente moderna, assegurando que "hoje � melhor do que ontem
e amanh� ser� melhor do que hoje", est� morta. A incerteza invadiu o futuro. Podemos
certamente ter confian�a num progresso, mas ele n�o seria atribu�do a uma "lei" da
hist�ria, e sim a uma consci�ncia e a uma vontade humanas, e n�o seria irrevers�vel. O
socialismo, sob o modelo sovi�tico e, para alguns pol�ticos ou tecnocratas, sob o modelo
social-democrata, deixou de ser a Solu��o para o futuro. Depois de 1989, o liberalismo
econ�mico representou por pouco tempo a nova Solu��o. Da� a tend�ncia de uma grande
parte do mundo, sobretudo quando o presente � angustiante, de retornar �s ra�zes, ao
passado, � esperan�a religiosa, de se fechar na comunidade �tnica ou nacional.
Existe entre n�s uma tend�ncia de planejar mais o "dia-a-dia", de tentar viver o presente.
Desse modo, assistimos a uma resist�ncia espont�nea contra a prosa do cotidiano, contra
a banaliza��o da vida. Evadimo-nos nas f�rias, nas viagens ex�ticas, nos fins de semana,
nas sa�das. A adolesc�ncia, principalmente, esfor�a-se por resistir � prosa do mundo
adulto, sob a forma da aventura, do "espetacular", dos �xtases provenientes das drogas
ilegais ou legais (�lcool). Essas n�o s�o obrigatoriamente as divers�es no sentido
pascaliano. S�o as tentativas de resistir � ofensiva da prosa generalizada pr�pria da
nossa civiliza��o, de subtrair-se � quantifica��o de todas as coisas e � mecaniza��o das
condi��es de vida. Aos poucos, por todos os lados, a qualidade come�a a resistir �
quantidade.

P.: Como o senhor definiria, setenta anos depois do ensaio de Freud do mesmo
nome, nosso "mal-estar na civiliza��o"?
Morin - Sigmund Freud, no ensaio ao qual o senhor faz refer�ncia, atribu�a o mal-estar da
civiliza��o � hiper-repress�o de uma sociedade policiada. As puls�es agressivas reprimidas
est�o escondidas em profundidade, fechando-se antes de subir novamente � superf�cie no
momento de crise. Na vis�o freudiana, a
civiliza��o � somente uma crosta superficial sobre o fundo da barb�rie. Quanto
mais ela aparece harmoniosa e ordenada, tanto mais ela abriga aquilo que se situa num
n�vel mais profundo, as tens�es exasperadas, as amea�as de implos�o nervosa. O
interesse de Mal-estar na civiliza��o reside no fato que, al�m dos seus aspectos te�ricos,
ele documenta, tr�s anos antes da ascens�o de Hitler ao poder, o lado oculto do
crescimento dos perigos, o avan�o em dire��o ao abismo de um continente inteiro. Reler
Freud, hoje, � tomar consci�ncia da dist�ncia que nos separa dele.
Existe um novo mal-estar, que se situa al�m daquele da repress�o dos
instintos, e que se deve aos sucessos da nossa civiliza��o. O desenvolvimento
t�cnico e material produziu um subdesenvolvimento ps�quico e moral, o
bem-estar produziu o mal-estar, sem suprimir as zonas de anomia e de mis�ria. Qualquer
indiv�duo traz consigo uma propens�o egoc�ntrica e uma propens�o comunit�ria. Nossa
civiliza��o desintegra as comunidades concretas, favorece n�o somente o individualismo,
o que � uma virtude, mas tamb�m seus excessos no egocentrismo e hedonismo.

P.: Muita ordem civilizada mata a ordem civilizada?
Morin - Os progressos do individualismo permitem a autonomia e a responsabilidade
pessoal. Em contrapartida, eles provocam a desintegra��o das solidariedades
tradicionais, familiares, locais e profissionais. Somente as solidariedades
an�nimas desenvolveram-se, tais como o Seguro-sa�de, o Seguro
Social...

P.: Essas solidariedades impessoais entregam os indiv�duos ao Estado, ao "ogro
filantr�pico", segundo a express�o de Octavio Paz?
Morin - Com efeito, esse sistema de solidariedade institucionalizada est� ligado �
desintegra��o das solidariedades concretas e ao crescimento das solid�es individuais.

P.: O estresse ocupa um lugar de destaque na sua reflex�o, como estado ao qual
est� condenado um indiv�duo a partir do momento em que suas rela��es com o
exterior est�o reduzidas ao m�nimo afetivo...
Morin - A Fran�a apresenta um inquietante paradoxo. � o pa�s do viver bem, mas �
tamb�m aquele que tem recorrido mais freq�entemente aos tranq�ilizantes.
Muitos males psicossom�ticos, depress�es, fadigas t�m uma determina��o ou
subdetermina��o sociol�gica ou civilizacional. A dificuldade em estabelecer uma rela��o
aut�ntica dur�vel com o outro e a inser��o numa comunidade
de destino evidencia um problema de civiliza��o.

P.: Um dos elementos do mal-estar na civiliza��o n�o reside no fato de que o
antagonismo ou o diferente n�o � a� mais tolerado, e que ele � traduzido
novamente, automaticamente, em termos do �dio?
Morin - Existe um enfraquecimento do superego c�vico no esp�rito de bem dos indiv�duos.
No m�ximo, quando ocorre a desintegra��o do tecido social, a
sociedade aparece como a inimiga, e o outro se torna um inimigo potencial.
No m�nimo, a degrada��o da rela��o com o outro se traduz pela incivilidade.
� preciso saber que a sociedade "funciona" com a civilidade. O desaparecimento da
cortesia torna dif�cil o di�logo, a compreens�o do outro. Ele favorece choques, grosserias,
insol�ncias e, finalmente, as viol�ncias. O desaparecimento da sa�de, dos signos
tradicionais de polidez traduz uma degrada��o das rela��es humanas.

P.: Com essa critica da cultura moderna, o senhor n�o est� fazendo importantes
concess�es � cr�tica tradicionalista da modernidade?
Morin - Sem d�vida, mas eu lhe recordaria que esta cr�tica est� presente em Marx,
quando ele afirmava que o capitalismo an�nimo destru�a as rela��es
de pessoa a pessoa. � preciso notar efetivamente o papel de mercantiliza��o
generalizada, ou seja, da diminui��o dos atos gratuitos e do crescimento dos desejos
materiais. Ocorre tamb�m as necessidades da alma humanana compreens�o, no amor e na
amizade que est�o mal satisfeitas. A crise da civiliza��o � invis�vel porque vemos somente
uma mir�ade de crises individuais, de problemas separados uns dos outros. Eu a vejo de
modo profundo. Marx dizia que a hist�ria progride pelo lado errado. Poder�amos hoje
interrogar sobre a pertin�ncia do termo "progresso".
A idolatria da modernidade impediu-nos de avistar o rosto escondido do progresso, sua
face obscura. Ela impede de ver que o progresso t�cnico,
cient�fico, econ�mico, n�o � a locomotiva do progresso humano.

P.: Podemos distinguir duas tend�ncias da aspira��o ut�pica: a utopia da vontade
de poder e a utopia da modera��o e da autolimita��o?
Morin - A modernidade europ�ia foi animada por uma utopia que prometia ao homem um
aumento ilimitado de seu poder. Sob essa �tica, o apelo � modera��o � realista, n�o
ut�pico, do mesmo modo que o apelo da fragilidade e da finitude humana. A quimera da
domina��o total do mundo, encorajada pelos prodigiosos desenvolvimentos das ci�ncias e
das t�cnicas, chocam-se atualmente com a tomada de consci�ncia de nossa depend�ncia
no que concerne � biosfera e � tomada de consci�ncia dos poderes destruidores da
tecnoc�ncia.
Do meu ponto de vista, h� dois tipos de utopia. A "boa", que prop�e um progresso t�cnica
ou materialmente poss�vel, mas atualmente imposs�vel. A "m�", que � uma utopia de
harmonia e perfei��o que acredita poder se impor pela for�a. Para mim, a supress�o das
guerras entre na��es ou a solu��o do problema da fome no mundo t�m solu��es, mas elas
s�o ainda imposs�veis.
Minha utopia pessoal � aquela da Terra-P�tria, porque todos os seres humanos
vivem um destino comum em face das amea�as ecol�gicas e nucleares, em face do
mercado mundial e da comunidade de destino, aquela que define uma p�tria, segundo a
concep��o de Otto Bauer. A m� utopia � a utopia da perfei��o, do aniquilamento dos
conflitos, da evacua��o do negativo. � a utopia que a Uni�o Sovi�tica pretendeu realizar,
quando, de fato, ela criou uma sociedade totalit�ria.

P.: A necessidade de escapar �s malhas da realidade alimenta, sobre o terreno
das lutas sociais, a reivindica��o de uma "outra pol�tica". Esse fato representa o
sinal de um retorno pela pequena porta da utopia?
Morin - De fato, existe uma contesta��o que se amplifica ou se radicaliza, existe uma
cr�tica da mundializa��o econ�mica neoliberal, mas n�o existe ainda uma alternativa.
Mesmo com a maior das greves em 1955, mesmo na recente campanha eleitoral, os
trotskistas n�o propuseram como alternativa a Revolu��o socialista. O modelo econ�mico
sovi�tico est� morto. Existe uma justa aspira��o por uma outra pol�tica, por uma outra
via, e eu pr�prio proponho uma "pol�tica de civiliza��o", mas nenhum partido prospectou
ainda este novo caminho.

P.: Mas certas forma��es qualificadas de populistas reivindicam igualmente uma
"outra pol�tica".
Morin - Podemos considerar como utopia o mito da Frente Nacional, de uma identidade
francesa purificada? Trata-se, antes de tudo, de um desconhecimento da realidade
francesa, feita da franciza��o multissecular das etnias heterog�neas,
e que se fundamenta num esp�rito comum, numa vontade comum, e n�o em um sangue
id�ntico. N�o podemos nos esquecer de que a origem da identidade francesa � mesti�a,
visto ser ela trans-galo-romana.

P.: A revolta ou o protesto n�o esgota, portanto, o sentido de retorno ao pol�tico?
Morin - � uma banalidade sem sentido afirmar que � preciso modernizar a pol�tica
francesa. De fato, a urg�ncia � muito mais ambiciosa, se eu ouso dizer, de
p�s-moderniz�-la, de avistar um al�m da modernidade. Estou convencido de
que podemos continuar na chamada via do desenvolvimento com a obsess�o da
eficacidade � rentabilidade econ�mica e primazia da t�cnica. Devemos compreender que a
qualidade deve primar sobre a quantidade, que aquilo que � propriamente humano foge ao
c�lculo. Foi essa a revanche de Ivan Illich, profeta da convivialidade. A cada ano nossas
sociedades hipertecnol�gicas, voltadas � rentabilidade e ao lucro desenfreados, s�o
expostas �s cat�strofes, como revelou a crise da vaca louca.

P.: N�o � necess�rio que se diga uma coisa e seu contr�rio, ou seja, ao mesmo
tempo recusar o realismo sem frase e resistir � tenta��o do imagin�rio?
Morin - � preciso fazer, simultaneamente,a cr�tica ao realismo e a cr�tica � utopia.
� conveniente ser capaz de ter um pensamento complexo. Bernard Grethuysen dizia: "Ser
realista, que utopia!". Ap�s a derrota francesa de 1940, e at� o outono de 1941, ser
vichyste era ser realista, ou seja, aceitar como fatalidade a domina��o nazista sobre a
Europa. Esse realismo tornou-se irrealista em dois anos. � preciso, enfim, conceber para o
futuro a possibilidade de uma nova cria��o, de uma metamorfose, inconceb�vel antes que
ela se produza.
Quando um sistema � incapaz de resolver com seus pr�prios meios seus problemas
fundamentais, ou ele se rompe, ou consegue fazer surgir a partir de si mesmo um
"metassistema", mais complexo, capaz de resolver os problemas que lhe s�o colocados.

P.: Mediante os perigos que nos confrontam, estar�amos n�s diante da alternativa
"associa��o ou barb�rie"?
Morin - As sociedades atuais s�o incapazes de tratar os problemas planet�rios
fundamentais. � vital que elas se associem, da� a alternativa associa��o ou barb�rie. Mas
essa associa��o deveria fazer emergir uma sociedade de um tipo novo, uma sociedade-
mundo.

P.: Seus desejos de um "new deal civilizacional", mais do que um tipo neorealista,
passa por uma reforma intelectual e moral?
Morin - N�o podemos equacionar os problemas globais do planeta enquanto
estivermos num conhecimento fragmentado em disciplinas fechadas; � preciso uma
reforma do pensamento que nos permitisse conceber os problemas fundamentais e os
problemas globais que nosso conhecimento atual reduz a migalhas. N�o podemos pensar
nem de maneira local nem global. Eles se interpelam sem parar, interpenetram e se
confundem. Da� a necessidade de um pensamento complexo.

P.: O apelo heideggeriano de habitar poeticamente a terra n�o pode dar uma
forma concreta � sua utopia da complexidade?
Morin - Vivemos prosaicamente quando fazemos aquilo que somos obrigados a fazer para
sobreviver. Viver verdadeiramente � viver na intensidade da paix�o, do amor, do jogo, da
comunidade.
Acredito que � preciso substituir a id�ia de desenvolvimento, que se confia ao progresso
tecno-econ�mico para assegurar o progresso humano, pela id�ia de uma pol�tica de
civiliza��o, que nos conduz a reformar nossa pr�pria civiliza��o e a reconsiderar os
princ�pios que a comandam e que, na minha opini�o, conduzem-nos � esclerose, �
regress�o, em dire��o � cat�strofe. De resto, n�o se manifestam mais em nossa
civiliza��o nem a esperan�a nem a solidariedade.
A id�ia de que um outro caminho � poss�vel suscitaria uma ressurrei��o da esperan�a. N�o
mais a antiga esperan�a, fundada sobre a certeza do progresso, mas uma esperan�a
consciente da aposta que ele comporta.


MARGEM, S�O PAULO, No 16, P. 177-182, DEZ. 2002
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