O Automatismo Concordo-Discordo e as
Armadilhas do Reducionismo
Humberto Mariotti
p�g. 2/2
A Arte de Esperar

No dizer do matem�tico Claude Shannon, os fatos que acontecem desordenadamente e
sem significado constituem ru�dos de comunica��o. Contudo, o que para n�s � ru�do para
outros pode ser informa��o e vice-versa. Al�m disso, o que num primeiro instante
percebemos como ru�do pode, algum tempo depois, ser percebido como informa��o. Esse
intervalo � o que se chama de tempo de defasagem ou tempo de espera dos sistemas. A
incapacidade de respeit�-lo � um dos fatores que mais contribui para o estreitamento e o
obscurecimento do nosso horizonte mental. � por isso que a diversidade de opini�es
precisa ser respeitada: ela � a melhor forma de evitar a redund�ncia e gerar informa��o. A
redund�ncia uniformiza. A informa��o forma por dentro, isto � transforma. A redund�ncia
gera condicionamentos. A informa��o produz aprendizagem, educa.

Os processos do mundo natural n�o s�o imediatos, como quer a ansiedade da nossa
cultura. Exigem um tempo de evolu��o � o tempo de defasagem sist�mico �, que pode
durar uma fra��o de segundo ou ser muito longo. Para n�s, � muito dif�cil lidar com essa
imprevisibilidade e, por isso, estamos sempre querendo atropel�-la, o que quer dizer que
tendemos a n�o respeitar as din�micas da natureza.

� claro que diminuir a preval�ncia do automatismo concordo-discordo n�o implica ter de
concordar com tudo, nem discordar de tudo. O que � importante � n�o concordar ou
discordar logo de sa�da, porque essa atitude trava o nosso entendimento e fecha a nossa
raz�o. Precisamos aprender a transformar o reducionismo em aliado, tirando-o de condi��o
de armadilha que tende a nos aprisionar nos limites de nossa vis�o imediatista de mundo.

Aprender a ouvir at� o fim, sem concordar nem discordar de imediato �, antes de mais
nada, uma postura de respeito ao outro. Talvez ele demore a entender isso, e da� nem
sempre nos retribua com o mesmo respeito. Mas, n�o podemos depender dessa condi��o
para exercer a nosso pr�pria postura �tica. No entanto, concordar nem sempre significa
que devamos nos colocar � merc� das opini�es e preconceitos do outro, e discordar nem
sempre significa que devamos colocar-nos � merc� de nossas pr�prias opini�es e
preconceitos.

Em meu livro As Paix�es do Ego, proponho um m�todo dial�gico a que dou o nome de
"reflex�o inclusiva". Ele busca ser um dos meios de tentar diminuir a domin�ncia do
automatismo concordo-discordo. Um de seus pontos b�sicos consiste em prestar especial
aten��o �quilo com que menos concordamos e aproximarmo-nos do que mais nos desafia.
Isso n�o quer dizer, por�m, que tenhamos de ficar eternamente ouvindo ou observando
sem tomar uma posi��o. Repito que o automatismo concordo-discordo � a rea��o
reducionista imediata, autom�tica, limitante, n�o seguida de reamplia��o.

J� sabemos que � extremamente dif�cil reampliar o que reduzimos. � bem mais f�cil declarar
que o horizonte mental de nosso interlocutor � estreito e que o nosso � amplo. A esse
respeito, conv�m relembrar aqui uma curiosa esp�cie de reducionismo � a que pretende
reduzir tudo a uma totalidade ideal: tudo � o "cosmos", tudo � a "totalidade" e assim por
diante.

Trata-se, obviamente, de uma forma de idealizar a compreens�o, reduzir os seres humanos
a espectadores de suas pr�prias vidas, evitar o conv�vio com as diferen�as e incertezas e
tentar elimin�-las por absor��o. Como todo reducionismo radical, esse tamb�m constitui
uma forma de autoritarismo. Traduz a falta de respeito � diversidade de opini�es e,
portanto, � legitimidade humana do outro.

Existe outra variante do automatismo concordo-discordo, que consiste em, a todo o
momento, tentar estancar o discurso do interlocutor por meio de advert�ncias, ressalvas e
constantes recomenda��es de cautela, aconselh�-lo a "pensar bem", adverti-lo de que
deve estar ciente dessa ou daquela exce��o etc. Essas s�o observa��es que, quando
colocadas nos momentos oportunos, s�o em geral sensatas e pertinentes. Mas sua
repeti��o compulsiva funciona como trava e produz um efeito cens�rio e repressivo.

Para que o di�logo d� bons resultados, � preciso que respeitemos a legitimidade humana do
outro. O que isso quer dizer? Para o bi�logo Humberto Maturana, significa que o outro �
leg�timo por si mesmo: seu valor � intr�nseco, e por isso ele n�o precisa justificar-se por
sua exist�ncia. � por essa raz�o que n�o devemos neg�-lo por meio de artif�cios como o
automatismo concordo-discordo.

Mas, como vimos anteriormente, n�o podemos superar esse automatismo sem p�r o nosso
ego � prova. As dificuldades implicadas nesse processo s�o imensas. Um exemplo do
cotidiano ilustra esses obst�culos. Sabemos que os homens "pr�ticos" costumam n�o levar
a s�rio a "espiritualidade". De outra parte, os homens "espiritualizados" desprezam a
pr�tica, como alguns dos antigos faziam com os trabalhos manuais.

Dessa maneira mant�m-se a divis�o, que nada mais � do que uma manifesta��o do
automatismo do qual estamos falando. Ela pode ser expressa assim: "Estou sempre
prestando o m�ximo de aten��o � pessoa com quem falo, mas n�o para verificar o efeito
que o conte�do do que ela diz produz em mim. Em vez disso, o que fa�o � ficar vigilante,
com a finalidade de surpreend�-la numa falha. Estou sempre alerta para, no momento
'certo', concordar ou discordar automaticamente, ou seja, julgar essa pessoa a partir do
que ela est� dizendo agora. Para isso, uso a unidimensionalidade da minha primeira
impress�o". Em nossa cultura esse mecanismo atinge a todos n�s, sejamos 'pr�ticos' ou
"espirituais'".

� evidente que a capacidade de ouvir sem discordar nem concordar de imediato (isto �,
ouvir de modo fenomenol�gico), pode ser aprendida, embora n�o seja um processo f�cil.
Vimos, com Shannon, que fatos que se reproduzem com regularidade s�o redund�ncias. J�
os eventos portadores de novidade, de surpresa, s�o informa��es. Ao acionar o
automatismo concordo-discordo, visamos reduzir a informa��o a um referencial conhecido,
isto �, tiramos dela o efeito surpresa, a aleatoriedade. Essa redu��o tem a "vantagem"
adicional de fazer com que n�o pensemos.

� por isso que as pessoas nos cobram sempre opini�es fechadas. A 'd�vida' e o 'talvez' s�o
circunst�ncias assustadoras para n�s. Em geral, assumimos uma posi��o preconceituosa
diante dos indiv�duos que nos dizem que ainda n�o t�m opini�o formada sobre um
determinado assunto. Costumamos cham�-los de indecisos, porque estamos convencidos
de que todos devem ter sempre posi��es imediatas e definitivas sobre tudo.


Preocupa��o e Cuidado

N�o tomar posi��o imediata, respeitar a defasagem dos sistemas, ouvir at� o fim sem
concordar nem discordar (isto �, sem fazer ju�zos imediatos de valor) � tudo isso nos
amea�a. A sociedade nos cobra o uso sistem�tico do automatismo concordo-discordo. A
atitude de espera, de observa��o inicial n�o-julgadora, � vista como estranha, como algo
a ser combatido, um verdadeiro perigo. Se olharmos com cuidado, veremos que o ato de
ouvir, sem concordar nem discordar de imediato, significa renunciar a tra�ar uma fronteira
e ficar de fora dela.

Penso que agora � poss�vel resumir alguns dos pontos que podem ajudar na pr�tica da
reflex�o inclusiva:
1. A mente faz parte do c�rebro; o c�rebro faz parte do corpo; o corpo faz parte do
mundo. Logo, a mente n�o � separada do mundo.
2. A realidade de um indiv�duo � a vis�o de mundo que sua estrutura lhe permite perceber
num dado momento.
3. Tal estrutura muda continuamente, de modo que essa compreens�o, que num dado
instante nos parece fora de d�vida e definitiva, pode n�o s�-lo mais tarde.
4. Enquanto permanecer apenas individual, qualquer compreens�o de mundo ser� prec�ria.
Por isso, �preciso ampli�-la por meio do di�logo.
5.Com quanto mais pessoas conversarmos sobre nossas percep��es e compreens�es,
melhor.������
6. Quando maior a diversidade de pontos de vista dessas pessoas, melhor ainda.
7. Se uma conversa produzir em n�s uma tend�ncia a achar que n�o estamos ouvindo
nada de novo, � bem prov�vel que estejamos na defensiva.
8. � muito importante dar especial aten��o aos pontos de vista com os quais mais
discordamos e aos comportamentos que mais nos irritam.
9. Mas isso n�o quer dizer que estejamos obrigados a aceitar tudo ou a concordar com
tudo: significa apenas que o contato com a diversidade � fundamental para a
aprendizagem e para a abertura de nossa mente.
10. Do mesmo modo, � fundamental dar a mesma aten��o (no sentido de reavaliar
constantemente) aos pontos de vista com os quais mais concordamos, isto �, �s cren�as
e pressupostos que nos deixam mais confort�veis, mais acomodados.

Pode-se tamb�m dizer que a reflex�o inclusiva busca mais a sabedoria do que o
conhecimento, pois o conhecimento procura definir e � em casos extremos � rotular os
fen�menos, como se isso pudesse explic�-los em sua profundeza ou substituir sua
naturalidade e originalidade. Chamar uma percep��o que n�o conseguimos explicar de
"ilus�o de �tica" � um exemplo. Rotular (que � um exagero do diagnosticar) � bem mais
r�pido e exige menos esfor�o do que experienciar e compreender. Neste �ltimo caso, como
j� foi dito, � preciso aprender a lidar com o tempo de espera dos sistemas, coisa que nossa
ansiedade torna muito dif�cil.

Da� a tend�ncia a superdiagnosticar, que vem sendo denunciada, por exemplo, na medicina
atual: grande �nfase no diagn�stico (que implica muita tecnologia, muito trabalho
mec�nico) e comparativamente poucos resultados no tratamento. Este exige a
complementa��o do trabalho mec�nico do diagn�stico pela compreens�o da pessoa como
um todo: a preocupa��o, a solidariedade, o cuidado, a compaix�o � enfim, tudo aquilo que
o modelo de alteridade hoje predominante em nossa cultura dificulta ao extremo.

Mas sabemos que, infelizmente, a �nfase excessiva no diagn�stico nem sempre ajuda a
quem de direito, isto �, ao doente. Basta lembrar as in�meras doen�as (e s�o muitas)
diante das quais a medicina continua confundindo tratamento com explica��es
"cient�ficas". Fala-se muito em "controle" e pouco em qualidade de vida e, assim, a
solidariedade que o paciente precisa receber do m�dico acaba se perdendo no labirinto da
tecnoburocracia cient�fica e no hermetismo de seus jarg�es.

Por fim, � preciso ter sempre presente que as sugest�es de reflex�o acima enumeradas
n�o constituem receitas, nem muito menos diretivas. � melhor consider�-las componentes
de uma lista necessariamente incompleta, a ser questionada, acrescida e melhorada. N�o
poderia ser de outra maneira, ali�s.

Da� se segue que a reflex�o inclusiva est� tamb�m muito longe pretender resolver, mesmo
em parte, o problema do conhecimento. Seu objetivo � apenas ajudar a suavizar o rigor
cartesiano do modelo mental dominante em nossa cultura. Ao tentar aproximar as
consci�ncias l�gica e po�tica, ela se espelha em Heidegger: quer ser uma forma de trazer
para o cotididano a atitude fenomenol�gica. Tenta, enfim, seguir o exemplo dos grandes
poetas como, por exemplo, Fernando Pessoa:

N�o acredito em Deus porque nunca o vi.
Se ele quisesse que eu acreditasse nele,
Sem d�vida que viria falar comigo
E entraria pela minha porta dentro
Dizendo-me, Aqui estou!
(...)
Mas se Deus � as flores e as �rvores
E os montes e o sol e o luar,
Ent�o acredito nele,
Ent�o acredito nele a toda hora,
E a minha vida � toda uma ora��o e uma missa,
E uma comunh�o com os olhos e pelos ouvidos.
Mas se Deus � as �rvores e as flores,
E os montes e o luar e o sol,
Para que lhe chamo eu Deus?
Chamo-lhe flores e �rvores e montes e sol e luar;
Porque, se ele se fez, para eu o ver,
Sol e lua e flores e �rvores e montes,
Se ele me aparece como sendo �rvores e montes
E lua e sol e flores,
� que ele quer que eu o conhe�a
Como �rvores e montes e flores e luar e sol.
(...)
Sim, eis o que os meus sentidos aprenderam sozinhos:
As coisas n�o t�m significa��o, t�m exist�ncia.
As coisas s�o o �nico sentido oculto das coisas.
(...)
A espantosa realidade das coisas
� a minha descoberta de todos os dias.
Cada coisa � o que �,
E � dif�cil explicar a algu�m quanto isso me alegra,
E quanto isso me basta.
(...)
O Universo n�o � uma id�ia minha.
A minha id�ia de Universo � que � uma id�ia minha.
A noite n�o anoitece pelos meus olhos,
A minha id�ia da noite � que anoitece por meus olhos.
Fora de eu pensar e de haver quaisquer pensamentos
A noite anoitece concretamente
E o fulgor das estrelas existe como se tivesse peso.


Refer�ncias Bibliogr�ficas
HEIDEGGER, Martin. Being and time. Nova York: Harper & Row, 1962.
BOHM, David. Thought as a system. Londres: Routledge, 1994.
BOHM, David. On dialogue. Londres: Routledge, 1998.
MATURANA, Humberto. El sentido de lo humano. Santiago: Dolmen Ediciones, 1993.
MATURANA, Humberto, VARELA, Francisco J. Autopoiesis and cognition; the organization of the living.
Boston: Reidel, 1980.
PESSOA, Fernando. Obra po�tica. Rio de Janeiro: Jos� Aguilar Editora, 1974.
VARELA, Francisco J. Sobre a compet�ncia �tica. Lisboa: edi��es 70, s.d.
VARELA, Francisco J., THOMPSON, Evan, ROSCH, Eleanor. The embodied mind; cognitive science and
human experience.
Cambridge, Massachusetts: The MIT Press, 1997.

(� Mariotti, H., fevereiro/2000 )
HUMBERTO MARIOTTI � m�dico e escritor (ensaio, romance, conto). Coordena o Grupo de Estudos
Contempor�neos (Complexidade, Pensamento Sist�mico e Cultura) da Associa��o Palas Athena, em S�o
Paulo.
E-mail � homariot@uol.com.br

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