18� F�rum
20/agosto/2002
Rumo a uma justi�a restauradora:
a constru��o permanente da paz

Dr. Egberto de A. Penido
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H� v�rios campos em que podemos atuar. Um deles � lidar com o Or�culo de Delfos e
procurar conhecer a n�s mesmos. Isso parece pouco, mas � muito! E se voc� conseguir
ser gentil com voc�, com uma certa freq��ncia, ou at� mesmo, apenas hoje, haver� um
ganho muito grande. O trabalho dessa paz interior se refletir� na sociedade, e a paz
social � reflexo da somat�ria de toda individualidade, que � maior do que essa
somat�ria.
Est� claro que hoje em dia os Estados Unidos da Am�rica, como Estado, no plano
internacional, fazem uso de uma "justi�a" de for�a nas suas rela��es. E se n�o temos a
presen�a de um terceiro ente, com for�a, autoridade, suficiente para efetivar uma
media��o, como seria o caso de se esperar das Organiza��o das Na��es Unidas, n�o se
consegue equilibrar de modo harm�nico as rela��es entre os Estados. O desequil�brio �
manifesto diante do poderio econ�mico massacrante que vem do outro lado. H� um
desajuste enorme. T�m-se buscado f�rmulas para se contrapor a esta situa��o de
viol�ncia. Os EUA t�m sido veementemente criticado de diversas formas por tal
conduta.
Acho que uma iniciativa de di�logo como essa � um avan�o tamb�m. Isso � trabalhar
dentro do sistema de modo n�o-violento, mas transformador. Acho que a busca maior �
mudar esse paradigma reinante. At� l�, temos que trabalhar dentro desse sistema;
efetivamente � isso que n�s temos. � n�o aumentar essa injusti�a; � fazer boletim de
ocorr�ncia e n�o deixar pra l�. Na medida do poss�vel, prestigiar as autoridades policiais
no que elas podem realmente contribuir para a harmoniza��o. � voc�, na medida do
poss�vel, dentro desse sistema, ser testemunha em um caso etc. E criticar, com
consci�ncia, os sistemas de domina��o e todas suas estruturas ocultas. Buscar a
fundo, com consci�ncia, o que de fato �, o que de fato ocorre. Por exemplo, n�o
generalizar: "todo juiz � corrupto". Ter conhecimento do que voc� faz, sen�o voc� gera
um desservi�o e n�o um servi�o. Toda generaliza��o � um desservi�o. Mas volto a
dizer, acho que o b�sico � a integra��o individual, � saber lidar com a sua sombra.
Interlocutor: Voc� falou sobre n�o-julgamento. Fale um pouco mais a respeito...
Todas estas coisas que estou falando s�o dific�limas, s�o mais f�ceis de serem ditas do
que serem feitas! Mas � como a medita��o. Voc� n�o desiste mesmo vindo os
pensamentos externos. Por mais dif�cil que seja, voc� continua e n�o p�ra na
interfer�ncia. O n�o-julgamento n�o � apenas um ato de f�; � um olhar, uma postura,
uma habilidade criativa. A hist�ria da mulher ad�ltera d� um n�! � um bom exemplo da
din�mica do n�o-julgamento. Ela nos mostra como � poss�vel harmonizar os opostos! Os
pratos da balan�a � um dos s�mbolos usuais da justi�a -, dizem respeito tamb�m �
no��o da dualidade e de sua harmoniza��o. S�o dois pratos, mas tem um travess�o no
meio. Voc� tem a sombra e a luz. Como harmonizar isso? Voc� n�o separa; eles est�o
unidos pelo travess�o, mas tamb�m est�o separados pelo travess�o, numa dan�a
cont�nua. Por um lado, tem a discrimina��o, at� porque ela � inerente ao ser humano.
Busca-se ter consci�ncia dela; fazer uso dela, no seu melhor sentido, que � o de
separar o joio do trigo. Entender o diferente, usar o diferente para conhecer a si
mesmo. O fato de ele ser diferente, por si s�, n�o � melhor nem pior. Por outro, busca-
se ter uma vis�o maior do todo. N�o sabemos o que de fato est� ocorrendo. O que est�
sendo balanceado. � ter uma empatia com quem est� ali, o humano em voc�
reconhecendo o humano do outro. � olhar tendo abertura para possibilidades diferentes,
para as percep��es que v�o surgindo, n�o permanecendo cristalizado em an�lises. Mas,
ao mesmo tempo, estar percebendo seus valores, suas escolhas, aquilo que difere; do
contr�rio voc� corre o risco de "compreender" tudo e a� voc� cai num niilismo, deixa de
dar uma resposta e alimenta todo o sistema de viol�ncia. � uma busca muito individual o
caminho da harmoniza��o, � uma dan�a cont�nua. Como voc� d� espa�o para sua libido,
como lida com os limites?
Interlocutor: Posso fazer um coment�rio dial�tico sobre o n�o-julgamento? A busca
humana � pelo prazer. � necess�rio o prazer para a manuten��o das fun��es de
vitalidade humana. Ent�o, o prazer � um impulso que faz a gente se manter, se
alimentar, beber �gua e ter todas as fun��es que a vitalidade precisa. O julgamento �
o impulso da identifica��o, pois normalmente quando voc� tem o impulso de julgar,
voc� projeta no outro aquilo que voc� n�o entende dentro de voc�, e se identifica
atrav�s da diferencia��o e n�o atrav�s do auto-conhecimento. Ent�o, vejo que o
prazer se resolve pela ren�ncia e o julgamento se resolve pela compaix�o, que � algo
nobre e elevado, e pouco praticado.
A quest�o da compaix�o, do perd�o � fundamental. A justi�a trabalha com a busca da
verdade. Agora, se ela ficar s� com a verdade, ela corre o risco de ficar inquisit�ria, e
se ela ficar s� na compaix�o, fica uma coisa que podemos dizer aguada. Esse equil�brio
entre a verdade e a compaix�o, acho que � a chave realmente do n�o-julgamento. A
din�mica do perd�o � a chave do n�o-julgamento. Perdoar n�o se confunde com
esquecimento. Se voc� n�o abrir espa�o para o novo, como algo diferente pode surgir?
Tampouco, o perdoar � cumplicidade com o mal que foi feito. Al�m disso, a dor tem que
ser vivida, o mal deve ser reconhecido. Voc� tem de viver a ang�stia, a dor, a raiva, a
impot�ncia, seja o que for. N�o � n�o sentir raiva, ela tem de vir. S� a� � poss�vel surgir
uma transforma��o. A din�mica do perdoar est� na id�ia da circularidade: o que voc�
faz com aquilo que voc� recebeu? N�s vivemos num mundo redondo. Como voc�
devolve a energia que recebeu e n�o a ret�m? Ocorreu-me agora uma hist�ria
japonesa: havia um samurai que foi flechado por um bandido. O ferimento provocado
n�o chegou a ser fatal. Mas o samurai ficou totalmente indignado com a ousadia do
ofensor e vai atr�s do bandido. E nessa busca, esquece de cuidar da ferida, e ela
infecciona e ele morre. Quem � mais respons�vel pela morte dele? O perdoar � n�o reter
essa energia dentro de voc�. O perdoar, mesmo sob um prisma mais utilit�rio, � mais em
prol de voc� do que do outro! � n�o ficar preso ao outro!
Interlocutora1: Voc� est� falando de conceitos muito profundos, extremamente
diferentes da m�dia padr�o, que imagino eu, at� dos pr�prios juizes. Penso que voc�
deve ser visto muito como "avis rara". N�o deve haver muitos "Egbertos" no meio
jur�dico. Como � que voc� acha que isso pode se propagar? Uma pessoa que tenha
chegado a essas conclus�es que voc� est� falando, me parece que � um caminho para
se chegar ao n�o-julgamento, ao perd�o, � compaix�o etc., que pode transformar
essa sociedade tamb�m. Agora, como isso pode se propagar? Voc� falou que est�
havendo uma mudan�a na base; essa mudan�a de base cont�m alguns ingredientes
dessa natureza? E como essa mudan�a de base � vista pelas pessoas que est�o no
meio judici�rio h� muito tempo, com muitas coisas ultrapassadas, impregnadas,
antigas?
Interlocutor2: Gostaria de me manifestar tamb�m. N�o sei se entendi muito bem suas
coloca��es ou n�o, mas tenho uma dificuldade muito grande em compreender a n�o-
puni��o no sistema de justi�a. Primeiro, entendo que ela � v�lida, a psicologia
comportamental prova cientificamente que tende a aumentar a freq��ncia do
comportamento do indiv�duo na sociedade se ele for recompensado, e tende a diminuir
se ele for punido. Isso s�o dados cient�ficos facilmente localiz�veis, quer dizer, o efeito
das nossas a��es tem efeito no todo. Se nossa a��o � recompensada, ela tende a ser
reproduzida com mais freq��ncia, se ela � punida, tende a ser mais reduzida.
Portanto, n�o � s� uma quest�o individual. Como a sociedade reage � a��o do
indiv�duo n�o diz respeito s� ao indiv�duo, diz respeito tamb�m a essa a��o da
sociedade, ao reflexo que ela tem no todo, que pode aumentar ou diminuir a
freq��ncia daquele mesmo comportamento. Esse � um ponto. Tenho uma forma de
pensar estanque porque sou mu�ulmano. Dentro do conceito mu�ulmano, tr�s coisas
s�o fundamentais coletivamente: primeiro, oportunidades de educa��o; segundo,
oportunidades de vida, trabalho, alimenta��o etc.; e, terceiro, puni��o. A puni��o sem
esses dois outros elementos est� fora de contexto, ela s� faria sentido dentro desse
contexto de educa��o e oportunidade de vida e, a� sim, a puni��o entra somente para
aqueles que tiveram oportunidade de educa��o e de sobreviv�ncia e ainda praticam
um ato anti-social, e o efeito justamente da puni��o seria inibir o aumento da
freq��ncia daquele comportamento, caso ele seja recompensado pela impunidade.
Gostaria, ent�o, que voc� comentasse do ponto de vista da puni��o, n�o de sua
validade ou n�o.
Eu vou responder a todos. As quest�es trazidas podem ser respondidas de modo
complementar. Sem d�vida nenhuma, tudo isso � muito complicado. Krishnamurti acha
que n�o � poss�vel algu�m estar dentro de uma estrutura de poder e n�o acabar por ser
contaminado por esta estrutura.
Vou trazer aqui o meu testemunho, alguns aspectos da minha experi�ncia profissional.
Digo que h� mentalidades diferenciadas dentro da estrutura onde estou
profissionalmente inserido. Aqueles que assim atuam, dentro do sistema, t�m de priorizar
a criatividade, desenvolver uma habilidade, porque n�o interessa virar tocha humana;
sen�o deixa-se de atuar, de transformar, de dentro da estrutura, fazendo uso de tudo
de positivo que ela tem. H� muitos anos, eu advoguei durante cinco anos e quando
entrei na magistratura, quis voltar a advogar por v�rios motivos. Pensei que a
magistratura era uma coisa e foi outra muito diferente. Permaneci e permane�o ainda
porque na minha viv�ncia percebi que h� muito mais advogados de forma��o
human�stica do que ju�zes com essa forma��o; pelo menos na �poca que entrei, h� 10
anos atr�s. Al�m disso, a institui��o do judici�rio disponibiliza instrumentos institucionais
para o magistrado com grande poder de efic�cia. Dependendo da forma como voc� faz
uso destes instrumentos, voc� pode ajudar ou atrapalhar muitas pessoas. Nesse
sentido, permanece sendo importante ficar. H� coisas importantes a serem feitas e �
importante n�o se furtar a faz�-las. Se houver algu�m, por exemplo, que aplica Reiki no
processo ou qualquer outro m�todo de harmoniza��o e de equil�brio nos feitos que est�o
sob seus cuidados, n�o ir�, pelo menos por enquanto, sair falando indistintamente aos
seus pares, mas � importante que seja feito isto. H� momentos pr�prios para isso.
Tamb�m n�o leva a nada discursar, lamentar sobre as dificuldades. N�o � esse o
questionamento, a postura, que devem ser buscados. Importa como agir dentro do
campo de manobra que voc� tem. Isso � um exerc�cio de criatividade de cada um, que
vai sendo trabalhado. Mas, existem diversas outras pessoas com este olhar, com esta
busca. N�o sou o �nico. Algumas podem n�o ter o enfoque na espiritualidade, mas mais
no aspecto pol�tico, e est�o trabalhando desta forma, contribuindo muito bem na
magistratura. Existe a Associa��o de Ju�zes Para a Democracia fazendo um trabalho
muito s�rio. H� alguns que mesmo se apresentando dentro do estere�tipo do juiz
cl�ssico, possuem uma mentalidade pol�tica muito bacana. Voc� tem, ainda, diversas
outras formas de atua��o que se relacionam com este cuidado, com esta busca que foi
pontuada. Contudo, h� um predom�nio, principalmente na c�pula, ainda muito
conservador. Mas, h� pessoas bel�ssimas, por mais que os valores delas sejam
diferentes, e nem por isso a justi�a deixa de ser feita. H�, evidentemente e
infelizmente, aqueles que ficam muito a dever do meu ponto de vista, do meu
julgamento, que v�o contra uma s�rie de valores que eu preservo. Achar, no entanto,
que possuindo este olhar eu possuo a verdade, a beleza, que eu sou bacana etc. � um
equ�voco. � justamente o contr�rio, porque este olhar traz a percep��o da
complexidade, da diversidade do real. Ent�o, transformar uma institui��o por dentro �
complicado e �s vezes voc� fica contaminado. Eu, particularmente, muitas vezes sinto-
me muito constrangido e sem poder dentro da magistratura. Sinto-me absolutamente
vigiado seja pelos pr�prios pares, pela imprensa, pelas pessoas. Para mim, a fun��o do
magistrado � muito transparente, pelo menos no n�vel da Primeira Inst�ncia. Na minha
experi�ncia no Estado de S�o Paulo (e, aqui, n�o estou fazendo a defesa, estou sendo
muito cr�tico em rela��o aos magistrados; a quest�o da justi�a � uma experi�ncia muito
pessoal) n�o vejo ju�zes corruptos em Primeira Inst�ncia, n�o tenho contato com isso e,
os poucos que eu fiquei sabendo, porque tamb�m pode ter aqueles que s�o muito
competentes neste tipo de atua��o, sofreram na Corregedoria san��es graves, foram
colocados em disponibilidade etc. O que voc� tem s�o ju�zes vaidosos ou pregui�osos
ou arrogantes, o que � tamb�m desastroso. Ju�zes que sofrem o que a gente chama de
"juizite" ou vertigem de pequena altura (quando sobem no tablado). E agora, gostaria de
refletir um pouco, sobre a quest�o da mocidade e os novos pensamentos que v�m
surgindo. Como � ter uma pessoa de 22 anos julgando causas de fam�lia ou de qualquer
outra natureza? Quando fui para o interior, em S�o Jos� do Rio Preto, embora eu j�
tivesse 28 para 29 anos, em uma audi�ncia na Vara de Fam�lia, a pessoa viu que eu n�o
estava com uma alian�a e me disse: "o que o senhor sabe disso?". Portanto, isso �
question�vel; �s vezes, falta efetivamente experi�ncia para se lidar com as dificuldades,
complexidades, do of�cio de magistrado. Voc� tem algumas precipita��es muito s�rias.
Por outro lado, o jovem vem com uma mentalidade, um idealismo muito rico e tem
disposi��o e energia para lidar com todas as dificuldades iniciais da carreira.. E a
carreira de um juiz come�a no Interior. Necessariamente, voc� vai para o Interior. Voc�
come�a numa comarca menor e vem subindo at� chegar na Capital e depois ao Tribunal.
O jovem tem disponibilidade, disposi��o e idealismo.

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